domingo, 19 de maio de 2013

La Côte d'Azur

Ela chega em casa com a roupa amarrotada, o cabelo bagunçado e exausta. Completamente satisfeita e contente com isso. Saiu apertando interruptores e logo, o apartamento está todo iluminado. Larga o celular ao lado do micro e até pensa em olhar os e-mails, mas sabe que não vai conseguir ler todos e que o melhor é ir logo pra cama. No banheiro tirou toda a roupa, abriu o chuveiro e foi até o espelho. O excesso na bebida embaralha um pouco a visão. O relógio marca 3 da manhã.
Já não é mais seu aniversário. Foi ontem. 3 horas atrás. Quando o vapor do chuveiro começa a embaçar o espelho, ela entra no box e sente a água bater no rosto e escorrer pelo corpo. “Putz, mais um ano”. Embora não goste muito da idéia de estar um ano mais velha, percebe o sorriso bobo nos lábios. Tanto pelo que já havia conquistado e podia dizer que era seu, quanto pelo dia do aniversário em que tudo foi perfeito. A correria no trabalho foi compensada com a escapada até a praia, as cervejas com os amigos e o desfecho no Madame.
O banho diminuiu a tontura. Ela saiu do banheiro secando o cabelo e seguiu para o quarto. Pendurou a toalha e foi até a cama. Ajeitou os travesseiros e puxou o lençol. Não via a hora de se jogar no colchão. Então, algo refletiu no canto do quarto, onde havia deixado sua prancha de surf, ontem à tarde. Mas também havia deixado outra coisa ali. Só agora, quando pegou o objeto, pensou no quanto foi estranho o que aconteceu no dia anterior.
Resolveu dar uma escapada do trabalho. Mas acabou indo na hora do almoço [2 sanduíches e 1 coca diet] enquanto dirigia. Já havia se prometido aquele presente e o dia lindo e quente, incomum em São Paulo, não podia ser desperdiçado. “No máximo 3 ondas” pensou. Foram mais de 10. Só achou que era hora de parar e ir embora quando tomou um caixote e deu várias cambalhotas, parecendo um boneco. Seu corpo deslizou por um bom pedaço de areia. Ficou de 4 na areia tossindo. Se assustou quando alguém tocou seu ombro e disse:
– Ôce bebeu um bucado d’água, hein?! Cê tá legal?
– Estou sim, obrigada.
Ela pegou a prancha e voltou até a água. O biquíni havia se enchido de areia.
– Tá doida, mulé? Quando o mar cospe nóis desse jeito, é bom num abusar não.
Com ajuda da água, ela se livra do máximo possível da areia e só então percebe o quanto o sujeito é estranho. Parece um desses vendedores de praia que enchem o saco com aqueles estandartes e bandejas, tentando empurrar cordões, pulseiras e brincos. As pessoas chamam de hipies, mas nem eles mesmos sabem o que são. Ela teve certeza que tanto o sujeito quanto suas roupas, eram estranhos e velhos, mas limpos. E ele carregava uma pequena trouxa, que com tiras do próprio tecido, havia feito uma mochila.
– Não, é que estou cheia de areia – o jeito dele falar era a coisa mais esquisita que já tinha ouvido, mas achou melhor não rir – você não é daqui, né?
– Nah, sou di bem longe. E não sô desses vendedor que fica inchendo o saco, não. Mas priciso de dinheiro pra seguir viagem e cumê alguma coisa.
Ela havia saído da água e parou perto do sujeito. Ele era bem alto e o sol acima da cabeça não deixava ver seu rosto direito. Ela estranhou a simpatia que sentia pelo desconhecido que o rosto não passava de uma sombra.
– Sei. Mas é melhor não ficar de bobeira por aqui. Se te pegarem vendendo, pegam suas coisas e ainda te dão uns tapas.
Ele abriu a trouxa com uma rapidez espantosa.
– Como eu disse, num sou desses vendedor. Mas faço essas coisinha e vendo algumas pra sobrevive.
Embora as coisas estivessem bagunçadas, ela podia ver cada uma nítidamente. Se encantou com um colar que tinha uma pedra num tom rosa bem claro.
– Tá, quanto é esse?
– Num sei, num coloco preço em nada. Quem compra, mi paga com quanto acha qui vale.
O jeito que ele falou deixou claro que não era brincadeira. Ela olhou o relógio, pensando no quanto ía se atrasar e viu que já estava atrasada.
– Puta merda! Perdi a hora. Vem, minha bolsa está lá no carro.
Os dois seguiram até a estrada, onde o carro estava estacionado e ela vestiu a bermuda e a blusa que estavam no banco do carona. Jogou a prancha no banco de trás e pegou a carteira que estava dentro da bolsa. Pegou o colar e pôs no pescoço. Olhou no espelho e gostou do que viu. Abriu a carteira, retirou e entregou ao sujeito, 3 notas de 10. Agora podia vê-lo. Parecia velho, embora não tivesse muitas rugas.
– É mais do que priciso, mas o que importa é quanto ôce acha que vale – ele pegou o dinheiro e guardou no bolso da calça.
– É, mas agora eu preciso ir embora ou acabo ganhando uma demissão como presente de aniverário.
– Péralá. Seu niversário? Intão eu tenho uma coisa aqui procê.
– Não moço. Eu estou atrasada mesmo e não posso olhar mais nada. Eu preciso ir embora.
Ela entrou no carro e antes que pudesse dar a partida, o sujeito estava colado ao seu lado, quase se enfiando pela janela. Tinha algo nas mãos.
– Num é pra vendê, não. É um presente meu procê.
Ela olhou o estranho objeto. Parecia uma chaleira bem pequena com entalhes que pareciam formar palavras e desenhos por toda parte.
– Não. Eu não posso aceitar – ela empurrou o mais delicadamente possível.
– Hum, acho que sua mãe insinô que num si deve di recusar um presente. Podi levá, até porque num deve ficá muito tempo cuntigo.
Ela decidiu aceitar porque estava realmente atrasada. E porque sua mão havia lhe ensinado que não se recusa presente. E a agradecer. Ele sorriu e balançou a mão no ar. Ela acelerou, fez o contorno e quando passou onde o estranho havia ficado, chegou a colocar o braço pela janela para acenar e até mesmo buzinou. Mas o sujeito havia desaparecido. Ela freiou o carro bruscamente e olhou em todas as direções. Nada. Um arrepio percorreu suas costas. Mas ela não tinha tempo pra nada daquilo. Seguiu à toda pro apartamento, onde deixou as coisas e correu pro trabalho.
Sentiu um calafrio percorrer suas costas enquanto alisava a pedra do colar e sentava, nua na cama, segurando o outro objeto. Todos elogiaram a peça em seu pescoço e só então ela percebeu que não havia contado a história pra ninguém. A pequena chaleira parecia ser de prata. Ela não fazia a menor idéia do que seriam aquelas palavras ou desenhos. Mas parecia muito antigo. Ela riu com o pensamento bobo de poderia ser uma lâmpada mágica. E mais ainda por pensar algo assim. Lembrou das histórias dos tempos de criança enquanto esfregava:
– Vai, lâmpada mágica. Cadê o gênio?
O sorriso sumiu de seus lábios quando aquilo começou a vibrar e caiu de suas mãos. Quicou no chão e parou perto da parede. A vibração cresceu e ela chegou a pensar que aquilo poderia explodir. Mas, como nas histórias infantis, a coisa parou de vibrar e começou a sair algo parecido com fumaça que rapidamente tomou todo o quarto. Mas o cheiro era doce. Lembrava alfazema. Ela ficou assustada e correu na direção da porta, mesmo não conseguindo enxergá-la. Foi tateando e encontrou apenas a parede. Circundou todo o quarto e pareceu haver apenas paredes ali. Caminhou de costas e caiu sentada na cama. Achou que estava ficando maluca e que logo ía começar a gritar. Então a fumaça começou a se dissipar e ela pôde relaxou ao ver que o guarda-roupas, a porta e todas as coisas estavam em seus devidos lugares. Mas também havia uma sombra que cresceu e veio em sua direção. Um sujeito parou de pé, bem à sua frente. Ela gritou e lembrou que uma das facas de sua coleção estava em cima da cômoda, logo atrás dela. Por puro instinto, impulsionou as pernas e girou por cima do ombro, numa cambalhota invertida. Caiu de pé, fora da cama e quando girou nos calcanhares, se chocou com o que parecia o peito de um homem. “Como pode ter mais alguém aqui? Como pode ter alguém aqui?” Mesmo com o pensamento rápido e lúcido, ela olhou pro outro lado da cama, e o sujeito não estava mais lá. Estava parado bem na sua frente, segurando a faca que ela pensou em pegar com a mão direita e com a outra, segura os pulsos dela. Era impossível alguém se mover tão rápido. Mas também não sabia mais o que podia ou não ser possível. Olhou pro sujeito, alto, forte, careca e com um bigode fininho. Ela ía começar a rir mas acabou gritando. Ele a empurrou na direção da cama, onde caiu sentada.
– Você esfregou e chamou, meu nome é Janoth e aqui estou!
– …o quê… que palhaçada é essa? Quem é você? Como é que entrou aqui?
– Ai-ai. Perguntas, perguntas, perguntas. Porque vocês complicam tanto? Acho que já me apresentei: me chamo Janoth. O quê posso estar fazendo aqui à essa hora? Assalto? Estupro? Hum, uma alucinação! Talvez seja apenas um sonho. Embora nos sonhos, você não sentiria isso.
Ele espetou o braço dela e ela gritou, sentindo a ponta da faca arranhar o lado de dentro de seu braço esquerdo. Saiu apenas uma gota de sangue.
– Ai filhodaputa! Tá maluco?
– Desculpe – ele a soltou e deixou a faca sobre a cômoda – mas assim você entende que não vou lhe fazer mal e que não é nenhum sonho. O tempo é curto. Quando o sol nascer, eu tenho que partir.
Ela ainda estava assustada. Aquilo era irracional.
– Isso é loucura!
– É… vocês adoram complicar as coisas, hein?! Sei que você é inteligente, só está assustada. Mas como disse, não podemos perder tempo. Você tem duas opções: me mandar embora e poder dormir sossegada ou fazer um pedido.
– Ué, mas não são três?
– Nah, isso é folclore. Vocês que inventaram essa coisa de três pedidos. E você está bem ambiciosa pra alguém que não crê no que vê.
– Sei lá como é que isso funciona. Mas como é mesmo o seu nome?
– Janoth.
Ela olhou no braço, o lugar onde ele a havia cortado. O sangue já estava seco e ela achou parecido com a letra j.
– É. O jota do meu nome. Sempre deixo uma lembrança nas pessoas que conheço. E então, está pronta para o seu pedido?
– Só um minuto – ela vai até a janela. A cidade está quieta, parada. O tempo parece estar parado. Ela pensa um pouco e se volta pra ele – pode ser uma pergunta?
Ele estranha aquilo. Mas diz que sim, que se o desejo dela é uma resposta, ela a teria.
– Então lá vai: Qual é o sentido da vida?
Janoth deu um pulo da cama. Aquilo realmente foi surpreendente. Ele bate a mão na cama, indicando para que ela sentasse ao seu lado.
– Realmente… Não esperava algo assim. Mas, tenho que realizar o que me é pedido. Bom, você pode se espantar com isso mas, um pouco de tudo o que já ouviu é verdade. Deus realmente criou tudo o que existe e tudo o que você vê. Então, em 2023, Bum!!! Finalmente, vocês conseguem detonar o planeta. Literalmente.
Ele dá uma pausa, para que ela tome fôlego.
– Sem chance de sobrevida ou que venha a surgir qualquer outra, Ele até pensa em começar de novo, do nada. Mas, muda de idéia e resolve seguir com o plano original. Ele acredita que alguns de vocês conseguirão se salvar, se tiverem uma nova chance. É um otimista. Só que às vezes tem um senso de humor estranho. Então, Ele criou um universo paralelo onde a história recomeça, sempre vocês interrompem essa. E é isso: Repetição. E isso já acontece há mais de 320 bilhões de anos. E, incrivelmente, alguns de vocês realmente se salvam. Outros vão estar perdidos para sempre. Mesmo que vivam mil ou dez mil vezes, não vão mudar nunca. Alguns até pioram.
Ela está boquiaberta e o coração disparado.
– Putaqueopariu! Nunca tinha pensado nisso.
– Nem teria como. A sensação que você sentiu algumas vezes de achar que já viveu determinada situação, ter certeza de já conhecer um lugar onde nunca esteve ou pessoas que nunca viu, e que vocês chamam déjà vu. Isso acontece porque em uma das vezes, aconteceu algo que marcou sua vida naquele momento. Mas não funciona sempre. As eras estão como uma cadeia infinita. E alguns têm a memória mais poderosa e conseguem abrir janelas entre os mundos. O que vocês chamam de médiuns. A idéia que criaram de reencarnação foi baseada nisso.
– É muita informação. Puta merda, agora mesmo é que eu não durmo. Sacanagem é que vai acabar em o quê? Dezoito anos?
– Não se preocupe muito com isso. Primeiro porque sempre que acaba, começa de novo. Apesar do risco de qualquer hora Ele se encher disso e parar tudo; Segundo, porque você não vai se lembrar de nada disso amanhã.
– Ei, como assim? Isso é trapaça!
– Não mesmo. Você teve a sua resposta. Só que, ficar com ela, seria contra a vontade Dele. E acredite, você não ía gostar de vê-lo irritado.
– Tudo bem, mas é que estou me sentindo lesada.
– Acho que podemos chegar num acordo. Como você ainda vai passar por aqui mais vezes, eu posso interferir em algum ponto. Dependendo do que você pedir.
A claridade invadiu o quarto e ele ficou um pouco agitado.
– Sei que você precisaria de mais tempo pra pensar nisso, mas eu simplesmente desapareço assim que o sol aparecer. Por isso, seja rápida.
– Mas você é um gênio ou um vampiro? Tá bom, já sei. Nas próximas vezes que eu voltar… Putz, é esquisito falar isso… Tá bom. Nas vezes que eu voltar, quero férias de três meses na França, tomando vinho e ouvindo jazz na Riviera…
O sol bateu na parede do quarto e Janoth foi pro lado oposto. Tinha muito pouco tempo.
– Hum, fácil. Então, boas férias em Paris e bons sonhos – ele soprou um beijo nos olhos dela, que simplesmente apagou.
Acordou às 11:00 manhã de um sábado ensolarado. Com uma leve ressaca. Tentou lembrar do sonho que teve mas não lembrou de nada. Deve ter sido estranho. Foi ao banheiro e enquanto lavava o rosto, olhou curiosa a pequena cicatriz no braço esquerdo. Sabia que estava ali há bastante tempo, mas não lembrava de como a ganhou. Voltou pro quarto e pra cama e se enrolou nos lençóis. Olhou pro canto do quarto onde estava sua prancha e viu o colar que havia comprado do hippie no dia anterior. Enquanto a cabeça afundava no travesseiro, ela sentiu e estranhou o repentino desejo de voltar à Paris…

pour ma tante Kika

® Postado no Blog antigo em 20.10.2005

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