domingo, 19 de maio de 2013

La Côte d'Azur

Ela chega em casa com a roupa amarrotada, o cabelo bagunçado e exausta. Completamente satisfeita e contente com isso. Saiu apertando interruptores e logo, o apartamento está todo iluminado. Larga o celular ao lado do micro e até pensa em olhar os e-mails, mas sabe que não vai conseguir ler todos e que o melhor é ir logo pra cama. No banheiro tirou toda a roupa, abriu o chuveiro e foi até o espelho. O excesso na bebida embaralha um pouco a visão. O relógio marca 3 da manhã.
Já não é mais seu aniversário. Foi ontem. 3 horas atrás. Quando o vapor do chuveiro começa a embaçar o espelho, ela entra no box e sente a água bater no rosto e escorrer pelo corpo. “Putz, mais um ano”. Embora não goste muito da idéia de estar um ano mais velha, percebe o sorriso bobo nos lábios. Tanto pelo que já havia conquistado e podia dizer que era seu, quanto pelo dia do aniversário em que tudo foi perfeito. A correria no trabalho foi compensada com a escapada até a praia, as cervejas com os amigos e o desfecho no Madame.
O banho diminuiu a tontura. Ela saiu do banheiro secando o cabelo e seguiu para o quarto. Pendurou a toalha e foi até a cama. Ajeitou os travesseiros e puxou o lençol. Não via a hora de se jogar no colchão. Então, algo refletiu no canto do quarto, onde havia deixado sua prancha de surf, ontem à tarde. Mas também havia deixado outra coisa ali. Só agora, quando pegou o objeto, pensou no quanto foi estranho o que aconteceu no dia anterior.
Resolveu dar uma escapada do trabalho. Mas acabou indo na hora do almoço [2 sanduíches e 1 coca diet] enquanto dirigia. Já havia se prometido aquele presente e o dia lindo e quente, incomum em São Paulo, não podia ser desperdiçado. “No máximo 3 ondas” pensou. Foram mais de 10. Só achou que era hora de parar e ir embora quando tomou um caixote e deu várias cambalhotas, parecendo um boneco. Seu corpo deslizou por um bom pedaço de areia. Ficou de 4 na areia tossindo. Se assustou quando alguém tocou seu ombro e disse:
– Ôce bebeu um bucado d’água, hein?! Cê tá legal?
– Estou sim, obrigada.
Ela pegou a prancha e voltou até a água. O biquíni havia se enchido de areia.
– Tá doida, mulé? Quando o mar cospe nóis desse jeito, é bom num abusar não.
Com ajuda da água, ela se livra do máximo possível da areia e só então percebe o quanto o sujeito é estranho. Parece um desses vendedores de praia que enchem o saco com aqueles estandartes e bandejas, tentando empurrar cordões, pulseiras e brincos. As pessoas chamam de hipies, mas nem eles mesmos sabem o que são. Ela teve certeza que tanto o sujeito quanto suas roupas, eram estranhos e velhos, mas limpos. E ele carregava uma pequena trouxa, que com tiras do próprio tecido, havia feito uma mochila.
– Não, é que estou cheia de areia – o jeito dele falar era a coisa mais esquisita que já tinha ouvido, mas achou melhor não rir – você não é daqui, né?
– Nah, sou di bem longe. E não sô desses vendedor que fica inchendo o saco, não. Mas priciso de dinheiro pra seguir viagem e cumê alguma coisa.
Ela havia saído da água e parou perto do sujeito. Ele era bem alto e o sol acima da cabeça não deixava ver seu rosto direito. Ela estranhou a simpatia que sentia pelo desconhecido que o rosto não passava de uma sombra.
– Sei. Mas é melhor não ficar de bobeira por aqui. Se te pegarem vendendo, pegam suas coisas e ainda te dão uns tapas.
Ele abriu a trouxa com uma rapidez espantosa.
– Como eu disse, num sou desses vendedor. Mas faço essas coisinha e vendo algumas pra sobrevive.
Embora as coisas estivessem bagunçadas, ela podia ver cada uma nítidamente. Se encantou com um colar que tinha uma pedra num tom rosa bem claro.
– Tá, quanto é esse?
– Num sei, num coloco preço em nada. Quem compra, mi paga com quanto acha qui vale.
O jeito que ele falou deixou claro que não era brincadeira. Ela olhou o relógio, pensando no quanto ía se atrasar e viu que já estava atrasada.
– Puta merda! Perdi a hora. Vem, minha bolsa está lá no carro.
Os dois seguiram até a estrada, onde o carro estava estacionado e ela vestiu a bermuda e a blusa que estavam no banco do carona. Jogou a prancha no banco de trás e pegou a carteira que estava dentro da bolsa. Pegou o colar e pôs no pescoço. Olhou no espelho e gostou do que viu. Abriu a carteira, retirou e entregou ao sujeito, 3 notas de 10. Agora podia vê-lo. Parecia velho, embora não tivesse muitas rugas.
– É mais do que priciso, mas o que importa é quanto ôce acha que vale – ele pegou o dinheiro e guardou no bolso da calça.
– É, mas agora eu preciso ir embora ou acabo ganhando uma demissão como presente de aniverário.
– Péralá. Seu niversário? Intão eu tenho uma coisa aqui procê.
– Não moço. Eu estou atrasada mesmo e não posso olhar mais nada. Eu preciso ir embora.
Ela entrou no carro e antes que pudesse dar a partida, o sujeito estava colado ao seu lado, quase se enfiando pela janela. Tinha algo nas mãos.
– Num é pra vendê, não. É um presente meu procê.
Ela olhou o estranho objeto. Parecia uma chaleira bem pequena com entalhes que pareciam formar palavras e desenhos por toda parte.
– Não. Eu não posso aceitar – ela empurrou o mais delicadamente possível.
– Hum, acho que sua mãe insinô que num si deve di recusar um presente. Podi levá, até porque num deve ficá muito tempo cuntigo.
Ela decidiu aceitar porque estava realmente atrasada. E porque sua mão havia lhe ensinado que não se recusa presente. E a agradecer. Ele sorriu e balançou a mão no ar. Ela acelerou, fez o contorno e quando passou onde o estranho havia ficado, chegou a colocar o braço pela janela para acenar e até mesmo buzinou. Mas o sujeito havia desaparecido. Ela freiou o carro bruscamente e olhou em todas as direções. Nada. Um arrepio percorreu suas costas. Mas ela não tinha tempo pra nada daquilo. Seguiu à toda pro apartamento, onde deixou as coisas e correu pro trabalho.
Sentiu um calafrio percorrer suas costas enquanto alisava a pedra do colar e sentava, nua na cama, segurando o outro objeto. Todos elogiaram a peça em seu pescoço e só então ela percebeu que não havia contado a história pra ninguém. A pequena chaleira parecia ser de prata. Ela não fazia a menor idéia do que seriam aquelas palavras ou desenhos. Mas parecia muito antigo. Ela riu com o pensamento bobo de poderia ser uma lâmpada mágica. E mais ainda por pensar algo assim. Lembrou das histórias dos tempos de criança enquanto esfregava:
– Vai, lâmpada mágica. Cadê o gênio?
O sorriso sumiu de seus lábios quando aquilo começou a vibrar e caiu de suas mãos. Quicou no chão e parou perto da parede. A vibração cresceu e ela chegou a pensar que aquilo poderia explodir. Mas, como nas histórias infantis, a coisa parou de vibrar e começou a sair algo parecido com fumaça que rapidamente tomou todo o quarto. Mas o cheiro era doce. Lembrava alfazema. Ela ficou assustada e correu na direção da porta, mesmo não conseguindo enxergá-la. Foi tateando e encontrou apenas a parede. Circundou todo o quarto e pareceu haver apenas paredes ali. Caminhou de costas e caiu sentada na cama. Achou que estava ficando maluca e que logo ía começar a gritar. Então a fumaça começou a se dissipar e ela pôde relaxou ao ver que o guarda-roupas, a porta e todas as coisas estavam em seus devidos lugares. Mas também havia uma sombra que cresceu e veio em sua direção. Um sujeito parou de pé, bem à sua frente. Ela gritou e lembrou que uma das facas de sua coleção estava em cima da cômoda, logo atrás dela. Por puro instinto, impulsionou as pernas e girou por cima do ombro, numa cambalhota invertida. Caiu de pé, fora da cama e quando girou nos calcanhares, se chocou com o que parecia o peito de um homem. “Como pode ter mais alguém aqui? Como pode ter alguém aqui?” Mesmo com o pensamento rápido e lúcido, ela olhou pro outro lado da cama, e o sujeito não estava mais lá. Estava parado bem na sua frente, segurando a faca que ela pensou em pegar com a mão direita e com a outra, segura os pulsos dela. Era impossível alguém se mover tão rápido. Mas também não sabia mais o que podia ou não ser possível. Olhou pro sujeito, alto, forte, careca e com um bigode fininho. Ela ía começar a rir mas acabou gritando. Ele a empurrou na direção da cama, onde caiu sentada.
– Você esfregou e chamou, meu nome é Janoth e aqui estou!
– …o quê… que palhaçada é essa? Quem é você? Como é que entrou aqui?
– Ai-ai. Perguntas, perguntas, perguntas. Porque vocês complicam tanto? Acho que já me apresentei: me chamo Janoth. O quê posso estar fazendo aqui à essa hora? Assalto? Estupro? Hum, uma alucinação! Talvez seja apenas um sonho. Embora nos sonhos, você não sentiria isso.
Ele espetou o braço dela e ela gritou, sentindo a ponta da faca arranhar o lado de dentro de seu braço esquerdo. Saiu apenas uma gota de sangue.
– Ai filhodaputa! Tá maluco?
– Desculpe – ele a soltou e deixou a faca sobre a cômoda – mas assim você entende que não vou lhe fazer mal e que não é nenhum sonho. O tempo é curto. Quando o sol nascer, eu tenho que partir.
Ela ainda estava assustada. Aquilo era irracional.
– Isso é loucura!
– É… vocês adoram complicar as coisas, hein?! Sei que você é inteligente, só está assustada. Mas como disse, não podemos perder tempo. Você tem duas opções: me mandar embora e poder dormir sossegada ou fazer um pedido.
– Ué, mas não são três?
– Nah, isso é folclore. Vocês que inventaram essa coisa de três pedidos. E você está bem ambiciosa pra alguém que não crê no que vê.
– Sei lá como é que isso funciona. Mas como é mesmo o seu nome?
– Janoth.
Ela olhou no braço, o lugar onde ele a havia cortado. O sangue já estava seco e ela achou parecido com a letra j.
– É. O jota do meu nome. Sempre deixo uma lembrança nas pessoas que conheço. E então, está pronta para o seu pedido?
– Só um minuto – ela vai até a janela. A cidade está quieta, parada. O tempo parece estar parado. Ela pensa um pouco e se volta pra ele – pode ser uma pergunta?
Ele estranha aquilo. Mas diz que sim, que se o desejo dela é uma resposta, ela a teria.
– Então lá vai: Qual é o sentido da vida?
Janoth deu um pulo da cama. Aquilo realmente foi surpreendente. Ele bate a mão na cama, indicando para que ela sentasse ao seu lado.
– Realmente… Não esperava algo assim. Mas, tenho que realizar o que me é pedido. Bom, você pode se espantar com isso mas, um pouco de tudo o que já ouviu é verdade. Deus realmente criou tudo o que existe e tudo o que você vê. Então, em 2023, Bum!!! Finalmente, vocês conseguem detonar o planeta. Literalmente.
Ele dá uma pausa, para que ela tome fôlego.
– Sem chance de sobrevida ou que venha a surgir qualquer outra, Ele até pensa em começar de novo, do nada. Mas, muda de idéia e resolve seguir com o plano original. Ele acredita que alguns de vocês conseguirão se salvar, se tiverem uma nova chance. É um otimista. Só que às vezes tem um senso de humor estranho. Então, Ele criou um universo paralelo onde a história recomeça, sempre vocês interrompem essa. E é isso: Repetição. E isso já acontece há mais de 320 bilhões de anos. E, incrivelmente, alguns de vocês realmente se salvam. Outros vão estar perdidos para sempre. Mesmo que vivam mil ou dez mil vezes, não vão mudar nunca. Alguns até pioram.
Ela está boquiaberta e o coração disparado.
– Putaqueopariu! Nunca tinha pensado nisso.
– Nem teria como. A sensação que você sentiu algumas vezes de achar que já viveu determinada situação, ter certeza de já conhecer um lugar onde nunca esteve ou pessoas que nunca viu, e que vocês chamam déjà vu. Isso acontece porque em uma das vezes, aconteceu algo que marcou sua vida naquele momento. Mas não funciona sempre. As eras estão como uma cadeia infinita. E alguns têm a memória mais poderosa e conseguem abrir janelas entre os mundos. O que vocês chamam de médiuns. A idéia que criaram de reencarnação foi baseada nisso.
– É muita informação. Puta merda, agora mesmo é que eu não durmo. Sacanagem é que vai acabar em o quê? Dezoito anos?
– Não se preocupe muito com isso. Primeiro porque sempre que acaba, começa de novo. Apesar do risco de qualquer hora Ele se encher disso e parar tudo; Segundo, porque você não vai se lembrar de nada disso amanhã.
– Ei, como assim? Isso é trapaça!
– Não mesmo. Você teve a sua resposta. Só que, ficar com ela, seria contra a vontade Dele. E acredite, você não ía gostar de vê-lo irritado.
– Tudo bem, mas é que estou me sentindo lesada.
– Acho que podemos chegar num acordo. Como você ainda vai passar por aqui mais vezes, eu posso interferir em algum ponto. Dependendo do que você pedir.
A claridade invadiu o quarto e ele ficou um pouco agitado.
– Sei que você precisaria de mais tempo pra pensar nisso, mas eu simplesmente desapareço assim que o sol aparecer. Por isso, seja rápida.
– Mas você é um gênio ou um vampiro? Tá bom, já sei. Nas próximas vezes que eu voltar… Putz, é esquisito falar isso… Tá bom. Nas vezes que eu voltar, quero férias de três meses na França, tomando vinho e ouvindo jazz na Riviera…
O sol bateu na parede do quarto e Janoth foi pro lado oposto. Tinha muito pouco tempo.
– Hum, fácil. Então, boas férias em Paris e bons sonhos – ele soprou um beijo nos olhos dela, que simplesmente apagou.
Acordou às 11:00 manhã de um sábado ensolarado. Com uma leve ressaca. Tentou lembrar do sonho que teve mas não lembrou de nada. Deve ter sido estranho. Foi ao banheiro e enquanto lavava o rosto, olhou curiosa a pequena cicatriz no braço esquerdo. Sabia que estava ali há bastante tempo, mas não lembrava de como a ganhou. Voltou pro quarto e pra cama e se enrolou nos lençóis. Olhou pro canto do quarto onde estava sua prancha e viu o colar que havia comprado do hippie no dia anterior. Enquanto a cabeça afundava no travesseiro, ela sentiu e estranhou o repentino desejo de voltar à Paris…

pour ma tante Kika

® Postado no Blog antigo em 20.10.2005

Olhando

Ele tinha essa mania de olhar as pessoas. A esmo. Em qualquer lugar. De dentro do ônibus, do carro ou quando caminhava. Se divertia imaginando como viviam, aonde estavam indo…
O escritório onde trabalha fica no terceiro andar com uma varanda/terraço bem amplo. Ele gosta de debruçar no muro enquanto fuma e olhar a gente andando apressada lá embaixo. Um casal passa abraçado e os dois podem até não ser casados. A moça pode estar indo/vindo de algum motel barato com o amante enquanto o marido trabalha em algum canto da cidade. Ou também a está traindo…
O sujeito que espia disfarçadamente as pessoas que passam por ele, pode ser um ladrão analisando alguma provável vítima. Ou pode ser algum segurança contratado pelo comércio local…
Tantas possibilidades.
Tantos rostos sem nome.
Tantas pessoas que seguirão seus caminhos e que ele nunca conhecerá.
Tantas vidas que podem ser melhores que a dele.
Ou piores.
Então Ele percebe a garota numa loja em frente, um andar abaixo do seu. Parece uma loja de arranjos para festas. A fachada da loja é toda de vidro. Não tem janela. Tem uma espécie de porta que não leva pra lugar nenhum, já que não tem sacada. Ele a vê de corpo inteiro. Bonito corpo. Jeans e blusa curta com a barriguinha de fora. É, parece bonita. Mesmo de longe. Deve ter dezoito ou vinte anos. Mas tem cara de dezesseis. Como elas conseguem parecer ter dezesseis? Ele sabe que nunca terá essa resposta. Ela olha pra trás. Parece que alguém entrou na loja. Não, Ela volta a olhar pra rua. Os braços cruzados na altura dos seios. Parecem desafiar a lei da gravidade.
Da loja de festas, Ela vê um casal sentado num banco, conversando. A conversa parece séria, o que a deixa mais curiosa ainda. Ela quase entende o que estão falando. Tem certeza que não gostaria de ouvir o que dizem. Mas, tiraria o “encanto” da coisa. Sua imaginação é o melhor pra isso, já que assim pode fazer o casal brigar, discutir sobre uma viagem, combinar a festa do casamento…
O sujeito parado na sacada um andar acima do dela chama sua atenção por um instante. Ela imagina que seria engraçado se Ele estivesse fazendo a mesma coisa que Ela. A mesma “brincadeira” maluca de inventar histórias com as pessoas lá embaixo… Mas acha que ninguém é tão doido quanto Ela, e volta a olhar pra rua, seguindo os passos de uma garotinha de uns seis anos que caminhapuladança segurando a mão da mãe.
Sempre que volta à sacada, Ele não olha mais as pessoas.
Agora só olha pra Ela. E fica imaginando…

® Postado no Blog antigo em 23.09.2005

A Metade do Sonho

Então, aconteceu assim de repente. E mesmo que Murilo pudesse prever algo parecido, não tinha como se preparar. Algo que ele nem se lembrava mais. Algo bobo e infantil que aconteceu quando ele também era bobo e infantil, já que tinha apenas 13 anos.
A lembrança veio aos poucos. Fragmentos daquele dia.

Um dia que andava sem rumo pela casa, entediado. Primeiro dia de férias da escola e estava preso dentro de casa por causa da chuva. Que grande Injustiça! Principalmente quando se é criança… Na quarta vez que passou pelo corredor, viu a porta do escritório do pai entreaberta. Na verdade, era uma saleta que seu pai chamava de escritório e onde havia montado uma pequena biblioteca, onde ouvia música, lia, escrevia ou trabalhava sempre que estava em casa. Achou estranho, pois só estavam ele e a mãe na casa e seu pai sempre reclamava quando alguém esquecia a porta aberta. Não tinha chave, mas devia ficar sempre fechada. “E nada de bagunça!”.
Não tendo muito que fazer, resolveu bisbilhotar. Havia papéis com anotações espalhados sobre a mesa. A letra do pai era bonita. Tanto que ele passaria um bom tempo treinando, até ficar parecida. Dois livros abertos, algo relacionado a Leis, Direitos. Nada de interessante. Na estante existia uma quantidade razoável de livros. Conhecia todos. Bom, pelo menos as capas. E uma de tom verde num canto à direita chamou sua atenção. Não lembrava dele. E não teria como passar despercebido um livro com a capa verde. Parecia uma espécie de manual com exercícios para desenvolver a percepção, consciência, inconsciência. Esse tipo de coisa que esses tipos de livros têm. Estranhou aquilo, pois apesar de ser criança, já entendia as idéias do pai. Racional e cético. Não imaginava o pai com um livro desse tipo. Passou as folhas e leu alguns trechos de forma aleatória. A poltrona do pai, no canto do escritório, pareceu convidativa. Sua mãe preparava um bolo para o lanche da tarde. Não tendo nada mais interessante pra fazer, abriu uma bandeirola da janela, fazendo entrar um pouco mais de claridade e se instalou na poltrona. Abriu o livro e pelos títulos do índice ia lendo o que achava interessante. O primeiro e o segundo, achou as coisas mais malucas que já havia lido. Continuou. Passou por mais dois e agora no terceiro, percebeu que estava lendo e praticando. E aquilo fluía com uma naturalidade desconhecida pra ele. Aconteceu o mesmo com os dois seguintes. Mesmo pensando que pudesse ser algum tipo bruxaria ou hipnose, ficou curioso, pois percebeu que o que acontecia, era parecido com o que estava descrito no livro. Começou outro que dizia poder revelar o rosto da alma gêmea. Aquilo chamou sua atenção porque já começava a olhar as garotas com outros olhos. Acreditava até que já tinha se apaixonado duas vezes. E embora não entendesse muito do assunto, já tinha escutado algumas garotas falando de amor, paixão, alma gêmea. O tipo de conversa que as meninas têm.

Subitamente, ele não sabe onde está Sente a cabeça leve e tonta. O dia claro, o sol alto e quente. A forma como acontece, lembra aquelas cenas de filme onde a câmera passeia pelo cenário rapidamente, como os olhos de um pássaro voando baixo na direção do que parece ser… uma casa toda de madeira, com uma varanda que percorre a frente e a lateral. Na frente, uma escada com quatro degraus e alguém sentado, abraçando os joelhos com a cabeça enfiada entre os braços. Quando chega bem perto, o “passeio” termina numa freada brusca no momento que a garota ergue a cabeça e o olha nos olhos. A pele num tom moreno estonteante. Doce. Os olhos amendoados são tão negros quanto os cabelos longos e cacheados. A boca carnuda se move e ela diz algo que ele não consegue ouvir ou entender. Mas pôde sentir o hálito. Doce.

E tudo somiu tão rápido quanto veio. Murilo olha em volta, atordoado e vê que ainda está no escritório do pai. Sente uma estranha sensação de formigamento pelo corpo todo. As mãos estão trêmulas quando pega o livro caído no chão. Coloca de volta na estante e sai sem entender direito o que tinha acontecido.
A paisagem, o rosto e a quase certeza de saber, mas não ter entendido o que ela disse, ficariam em sua cabeça durante um bom tempo. Ainda assustado pelo que viu e sentiu, ficou quase uma semana sem conseguir entrar no escritório. Quando lembrou que não tinha visto o nome do livro ou de seu autor, a “prova do crime” não estava mais lá. Não teve coragem de perguntar ao pai e nem de comentar com ninguém. Aquilo foi tão real quanto absurdo. E como sempre acontece, o tempo passou e tudo foi sossegando nos cantos de sua mente, até cair no esquecimento.

Murilo estava distraído, lendo uma revista quando ela passou no corredor e seu perfume invadiu as narinas e sua memória. Algo acendeu e pulsou dentro de sua cabeça. Paralisado e tentando lembrar ou identificar o que era, levantou a revista até a altura dos olhos e a encontrou encostada na parede, próxima a uma das portas do vagão, indicando que saltaria na estação seguinte. Distraída, a garota olhava os sapatos e pensava que precisaria de mais um par até o fim das aulas quando sentiu que alguém a olhava. Ergueu a cabeça, com a curiosidade automática de ver quem seria e encontrou os olhos de Murilo com uma expressão alucinada e estranha. Ela se sentiu embaraçada e aliviada quando as portas se abriram e saltou do vagão. E, então aconteceu assim, de repente. E mesmo que Murilo desconfiasse que pudesse realmente acontecer, não tinha como se preparar para algo assim. Algo que nem se lembrava mais. Algo bobo e infantil que aconteceu quando ele era bobo e infantil, afinal tinha apenas 13 anos.
O cheiro ativou sua memória, mas quando a garota com uniforme de colegial ergueu a cabeça e o olhou, a lembrança daquela tarde invadiu sua mente com velocidade e força tamanha que ele chegou a sentir dificuldade em respirar, as mãos tremiam e o tempo pareceu parar. Só voltando ao normal quando as portas do metrô se fecharam. Pelo vidro da janela, ele viu a garota indo para a saída do metrô. Só percebeu que havia se levantado quando as pernas fraquejaram. Buscou apoio no encosto do assento e deixou o corpo desabar. Algumas pessoas olhavam de modo estranho, mas ele estava alheio a isso. Quase passou da estação seguinte, onde sempre desce. Seguiu para a saída da estação de Botafogo e foi andando pra casa. A cabeça não parava um minuto. As idéias se misturavam em trechos desordenados. Se sentia mais calmo, mas o coração ainda estava um tanto acelerado. Rever aquele rosto 20 anos depois e constatar que existia de verdade era algo assustador.
“Meu Deus ela existe de verdade existe mesmo e esteve na minha frente e eu não fiz nada e provavelmente nunca mais vou vê-la”.
Ele passou a semana andando de metrô entre as seis e sete da noite. Indo e vindo. “Mas enquanto estou voltando de Copacabana, ela pode estar vindo do Centro. E o contrário também. Pelo uniforme, dá pra saber que é normalista. Mas de qual colégio? Será que mora no Flamengo ou estava só de passagem? O quê diabos significa isso tudo?”.
Tentou controlar a situação o máximo que pôde. O rendimento no trabalho caiu um pouco. Achou extremamente oportuno que Carla estivesse viajando. Esperava ter esclarecido aquilo até o final do mês, quando ela chegasse, pois com certeza perceberia logo que tinha algo errado. O problema é que ele não sabia como resolver aquilo. Ele não sabia nem o quê era aquilo…
Numa quinta-feira fria, falou com Pedro, um de seus chefes na agência, que precisava resolver algumas coisas e pediu o dia livre. Chegou às oito e saiu às nove. A chuva fina ajudava o inverno a deixar a cidade fria e melancólica. Caminhou sem rumo pelas ruas do Centro e quando viu, estava em frente à Biblioteca Nacional. Gostava de lá. E era disso que precisava: a calma e o silêncio do lugar. Foi até a primeira mesa que vazia que viu, tirou algumas folhas e lápis da pasta que carregava. Não pretendia escrever ou desenhar nada, mas era bom pra passar o tempo e ajudava a disfarçar se começasse a olhar pro nada e falar sozinho. Você achar que está ficando doido é uma coisa. Complicado é quando os outros também começam a achar. Sabia que aquilo não podia virar obsessão. Mas não conseguia parar de pensar.

Sentiu um estranho calor na nuca e então, aquele perfume novamente. Murilo pensou que a loucura havia chegado e acabava de se instalar e achou que ía começar a sentir e ver coisas. A boca seca e o coração alucinado fizeram com que ele olhasse em volta. Ali! A garota numa mesa ao próxima a sua, olhando pra ele até o momento que seus olhos se encontraram e ela baixou os dela rapidamente, voltando pro livro e o caderno abertos à sua frente. Ele guardou tudo na pasta, tentou se controlar e foi até ela:
– Michelle!
Ela parou de escrever e ergueu os olhos, curiosa.
– Oi?
– Seu nome é Michelle, não é?
– É, mas eu não lembro de te conhecer.
– Provavelmente não, mas eu te conheço há vinte anos.
– ???
– Nossa, vai ser mais difícil do que eu pensei. Não sei nem por onde começar.
– Que tal mostrando a carteirinha de maluco?. Eu tenho dezessete anos.
– Olha, pode parecer absurdo… Na verdade, é absurdo, mas eu preciso que você escute essa história, por mais doida que ela possa parecer.
– Mas primeiro me diga porquê que eu tenho que ouvir essa tal história e… Caramba! Você é o cara do metrô que ficou me olhando esquisito!
Murilo se perdeu um pouco, procurando entender do que ela estava falando e quando viu, pensou em como sua cara deve ter parecido estranha.
– É, eu devia estar com cara de idiota. Mas foi o choque de te reconhecer. É por isso que eu tenho que te contar. Você faz parte dela. E me desculpe se te assustei.
– Tudo bem. Eu escuto bobagem toda hora por causa do uniforme. Já nem sinto tanta raiva desses doentes que ficam babando quando a gente passa…
– Mas eu não sou um desses babões. Talvez, daqui a uns vinte ou trinta anos?!
Murilo só reparou que ela estava com a roupa daquele dia, quando ela falou.
– Foi a primeira coisa que eu pensei. Mas, o estranho foi que tive a sensação de te conhecer e saber que não era isso – ela sentiu um arrepio na nuca – e mais estranho ainda é que essa impressão continua, mesmo nem sabendo o seu nome.
– Murilo – ele inclina um pouco o corpo sobre a mesa que os separa, estendendo a mão pra ela. Os dois acham o toque agradável.
- E agora que conseguiu me deixar curiosa, me diga o quê é que está acontecendo.
- Tá, mas acho que seria melhor em outro lugar ou vão acabar nos expulsando daqui. Você gosta de café?
Michelle pensa um pouco, fecha o livro e o caderno e diz:
- É, um café cai bem. E num lugar público não tem perigo do seu lado babão se manifestar.
Os dois começam a rir e ouvem o tradicional “shiiiii” pedindo silêncio. Saem pra rua e a chuva havia parado, mas as ruas estão tranquilas por causa do frio. Michelle desvia das poças na calçada e Murilo não desvia os olhos do rosto dela. Murilo tinha um sorriso bobo no rosto, sentindo um misto de euforia, agitação e alegria que não lembrava como era, há muito tempo. Michelle estava séria e curiosa pra saber o que aquele estranho teria de tão interessante pra falar, pois aquela sensação do metrô persistia e mesmo sem saber o que era, sabia que era algo sério. Ao menos pra ele.
– Você não é daqui do Rio, é? – ele perguntou.
– Não. Sou de Goiás.
– Nossa. Um bocado longe.
– É, um pouco.
– É aqui – a mão de Murilo toca levemente nas costas dela, puxando-a para seu lado.
Ele se adianta, abre a porta para ela e entram no que parecia um bistrô. O lugar é elegante e aconchegante. Apenas um sujeito distraído com um jornal, ocupa uma das pequenas mesas. Eles seguem até o fundo e Murilo puxa a cadeira para Michelle sentar. Um garçon se aproxima, lhes entrega o cardápio enquanto deseja um bom dia e se afasta. Michelle olha a decoração em volta e diz:
– Bem bacana isso aqui.
– É, eu gosto. O quê você sugere?
Ela pega o cardápio e não se demora olhando a lista.
–Vou querer Alpino, e você… Tem cara de gostar do tradicional: Expresso – ele confirma com a cabeça e um sorriso – mas eu sugiro o Cappucino Taça.
Ela gosta do ar de surpresa e satisfação no rosto dele, que chama o garçon e faz o pedido.
– Então, por que não começa? – com os cotovelos na mesa, Michelle cruza os dedos das mãos e apóia o queixo.
– O problema é que não sei por onde. É difícil acreditar que você esteja aqui na minha frente.
– Ok, vou tentar facilitar. Você mora aonde?
Em Botafogo. E você, é no Flamengo?
– É. E faz o quê da vida?
– Trabalho com publicidade. E você, vai ser professora?
– Espero que sim.
O garçon chega com uma enorme bandeja e coloca as xícaras fumegantes em frente aos dois. Ela sopra um pouco antes do primeiro gole. Murilo parece mais relaxado quando ela diz:
– Bom, que tal acabar com esse mistério e me dizer o que está acontecendo?
– Então aconteceu assim, de repente…
E não demorou mais que meia hora. Murilo estava elétrico. Contou todo a história, algumas lembranças da adolescência, o dia no metrô e os seguintes, até o primeiro e o segundo e atual encontro na Biblioteca. Em nenhum momento ela o interrompeu. Em algumas partes, ela notou os olhos dele brilhar. Em algumas partes, sentiu o brilho do seu apagar. Principalmente, nas vezes em que um calafrio arrepiou seus braços e a nuca. E nas que ficou com a respiração suspensa, quase esquecendo de voltar a respirar.
– E então, isso não é muito mais doido do que qualquer coisa que você tenha pensado?
O olhar dela está distante. Ele nota, mas não sabe o que é. Ou prefere não saber.
– De longe, é a mais incrível que já me contaram. Nem tive tempo de pensar em muita coisa. E agora, até pensar está difícil. Acho que você devia aproveitar isso num livro ou filme. Até acredito que você sonhou ou viu isso tudo, mas eu não sei nem o quê dizer.
– Nunca acreditei nessa coisa de alma gêmea. Mas era o que dizia no livro. A primeira vez que te vi foi tão real quanto agora. E já tinha até me esquecido disso tudo até você aparecer de repente e o podia ser só um sonho antigo virou uma grande confusão na minha cabeça.
– Bem legal da sua parte vir confundir a minha também.
– Não foi intencional, mas eu tinha que te contar. Tem muito mais coisa além de tudo isso. Eu tenho namorada e gosto muito dela. Sorte que ela está viajando e só chega no fim do mês. E não dá pra falar algo assim por telefone, mas na verdade, acho que não vou falar nada. E você, tem namorado?
Meu Deus, você pode até ser casada?!
– Sim. Não! Não sou casada. Ainda. Tenho namorando e me caso em dezembro – ela ergue a mão direita e ele compreende que o que já tinha visto, não era um simples anel com um brilhante – e eu amo o André. E já está tudo pronto, até o vestido. Afinal é daqui a cinco meses…
O silêncio em que ficam é quase constrangedor.
– Provavelmente, não vou ser nem convidado, né?
– Seria esquisito te ver na igreja. E seria muito masoquismo ir ao casamento de alguém que você pensa ser sua alma gêmea. Acredita mesmo nisso?
– Não acreditava até você aparecer na minha frente. Não tem como saber se vou gostar de você por causa de uma experiência num livro, mas como definir a idéia de ter antes mesmo que você tivesse nascido? O seu rosto e seu cheiro ficaram gravados na minha memória. Tem falhas como o metrô, que não tem nada a ver com aquele descampado e o cabelo também é diferente, mas tem esse perfume… Mesmo que passe vinte, trinta anos, não vou esquecer nunca.
– É, ainda tem essa coisa de cheiro – ela ergue o braço, aproxima o nariz da axila e fala num tom de deboche – não acredito que seja falta de banho…
Murilo acha graça mas logo em seguida fica sério.
– Mesmo num labirinto com os olhos vendados, eu acharia você.
– Você me assusta com isso, sabia?
– E como você acha que eu estou? Pode ser que eu esteja me precipitando. Seria muito mais fácil me aproximar como um caça-modelos por exemplo, e te dar um cartão da agência, afinal você é linda e não seria nada absurdo. Mas você conseguiria pensar em algo assim, se tivesse acontecido contigo?
– Acho que não. Mas Murilo, eu tenho sonhos e projetos que não podem ser abandonados assim, de uma hora pra outra. Você também já deve ter os seus. Já disse que acredito na sua história, mas a questão é essa: É sua história. Se você não tem como saber se pode vir a gostar de mim, imagine eu que não passei por isso.
Ele paga os cafés e saem pra rua. Ficam parados embaixo da marquise, se protegendo da chuva fina que havia voltado.
– Então é isso! A gente se vê de novo?
– Você parece ser um cara bacana, mas depois de tudo você tentaria ser apenas um bom amigo?
– É, seria mesmo difícil.
– Desculpa, mas eu tenho que ir. Perdi completamente a noção da hora. Espero que você fique bem.
Ela beija o rosto dele, atravessa a rua correndo e entra num ônibus que estava prestes a sair. Murilo não consegue se mover. Apenas acompanha a corrida dela e depois o ônibus se afastando. O calor do rosto e o hálito dela tão próximos não contribuem em nada para que ele fique bem.

Duas semanas depois, Murilo está parado em frente à Biblioteca Nacional. Quando decide entrar, Michelle aparece na porta. A expressão de surpresa logo dá lugar a um lindo sorriso.
– Oi!
– Oi. Que bom te encontrar. A gente pode conversar?
– Tá, mas está tudo bem?
– Sim e não. Mas e você, ainda vai se casar?
– Vou. Olha só, eu tenho que ir pra casa e parece que essa conversa vai ser longa. A gente pode ir andando pela praia.
– Legal. Mas só se eu levar os seus cadernos.
Os dois caminham lado a lado. Michelle está curiosa:
– Mas então, porque disse sim e não ainda agora?
– Sim porque eu acreditava que ía te encontrar aqui e porque fui promovido a chefiar a agência em São Paulo. O não é óbvio, porque provavelmente não vou mais te ver. E porque tinha alguma esperança de que, de repente, tivesse desistido de casar…
Ele fala num tom descontraído, brincando. Mas ela percebe que tem um fundo de seriedade.
– Nossa! Que legal isso. Tá vendo como as coisas podem não ser nada daquilo que você pensava?
Está tudo indo tão bem.
– E sua namorada, já voltou?
– Já. Ela vai comigo. É ótima jornalista e arrumará algo bem rápido. Ah, e tem outra novidade: gostei daquela sua idéia do livro e comecei a escrever algo sobre essa maluquice toda.
Michelle pára. Aquilo foi mais surpreendente ainda.
– Ai meu Deus, que legal! Qual o título?
– Ainda estou em dúvida, mas o provisório é: A Metade do Sonho.
– Hummm, parece bom. Explica o quê é?
– É você?! Sobre essa confusão toda. Sem saber se foi uma alucinação, ilusão ou um sonho. Dae que se você é minha alma gêmea, a outra metade, me veio essa idéia. Você é a metade do sonho. E como vou trocar os nomes pra evitar processo, indenização, essas coisas, gostaria de sugerir algum pra personagem principal?
– Ah, não sei. Eu gosto do meu nome, mas se for o caso, que tal Fabianna?
– Ok, anotado.
– Mas tem que ser com dois enes, hein?! Porque Michelle tem dois eles e assim vou saber que sou eu mesmo…
– Só não acredito que alguém publique, dae que vai ser bem difícil você ler alguma coisa. Engraçado é que nunca pensei em escrever nada, mas as idéias estão vindo tão rápido… E mesmo que não seja, tem sido como uma espécie de terapia. E melhor porque economizo analista e tento entender um pouco disso tudo.
– Tenho certeza que vai ser um sucesso. E como você trabalha com publicidade e foi promovido é porque tem boas idéias e é competente. Ótimas ferramentas pra qualquer escritor. Nossa, fiquei curiosa pra saber como vai ser.
Murilo caminha pensativo, olhando pro mar. As poucas pessoas na areia aproveitam o calor, depois de mais de uma semana de frio e chuva. Mudanças comuns no louco tempo carioca. Mas só aproveitam o calor, já que um mergulho na água não é muito aconselhável.
– Mas era pra ser escrita por nós dois. Vou tentar não tocar mais no assunto. Então fale de você, vem sempre na BN?
– Ah, mas lá é lindo, não é? Adoro aquele silêncio. E os livros. Meus pais se separaram e tive que vir com minha mãe pro Rio. Só pensava em me formar e voltar pra casa. Adoro aquele lugar e ía dar aula pras crianças. E pros adultos, já que poucos sabiam apenas escrever o nome. E como te disse, as coisas mudam. Não vê? Conheci o André e tive que fazer outros planos. Acho que não volto mais pra lá, mas ainda quero dar aula.
Ela indica que já era hora de atravessar a pista de novo. Caminham em silêncio por um bom tempo e se entram nas ruas cercadas de prédios. Murilo pensa que já deve estar perto e é melhor falar antes de chegarem onde ela mora. Ele pára e a segura pelo braço. Os dois ficam bem próximos:
– Posso te pedir uma última coisa?
– Pode. Mas vê lá o que vai ser, hein?!
– Nah é bobagem, mas preciso muito saber… – ele não completa a frase. Sem dar tempo para Michelle reagir, avança e cola sua boca na dela, que se assusta, mas depois relaxa e se entrega. O beijo é bom. Longo. Molhado. Quando se afastam, parece que não é bem isso que querem. Murilo fica atordoado e eufórico. Michelle fica atordoada e envergonhada olhando pra calçada, sem coragem de encará-lo. Ele toca no queixo dela e com uma leve pressão levanta a cabeça dela e diz:
– Desculpa, mas eu precisava saber como era. E talvez, guardar guardar comigo pra sempre.
– Não, tudo bem. Mas você não podia ter feito isso. Mas o quê que foi isso? Minhas pernas estão bambas, mas deve ser por causa do susto. Meu prédio é aquele ali – ela aponta.
Eles param na entrada do prédio. Michelle parece desorientada. Murilo entende e acha que não dá pra prolongar mais aquela situação:
– Então Michelle, boa sorte pra você. Em tudo.
– Ai, pra você também. Tenho certeza que vai dar tudo certo. Pra nós dois.
Quando ele se aproxima para beijá-la no rosto, ela se assusta e dá um passo pra trás. Num gesto, ele diz que está tudo bem e estende a mão para ela. Ela logo estende a sua. Ele beija as costas na mão dela, depois quase cola o nariz na pele dela e começa a cheirá-la. Ela acha aquilo esquisito e quando ele já avançava e subia pelo braço, ela lembra que estão na portaria do seu prédio e se afasta um pouco. Ele sabe que é hora de ir embora:
– Então, foi um prazer te conhecer pessoalmente. Vejamos onde isso tudo vai dar.
Ele se vira e sente a mão dela segurar seu braço.
– Murilo, espero que você tenha entendido a situação. Eu penso que na possibilidade de que, se existir mesmo, isso de almas gêmeas e elas se encontrarem, não exista uma regra, dizendo que vão ficar juntas. Pode ser que você seja o cara certo, mas apareceu na hora errada. A gente não pode se basear naquela experiência doida. Não tem como saber se ía dar certo. A gente nem se conhece.
Ele a olha nos olhos e fala tão baixo, que ela tem que assimilar o movimento dos lábios com o som diminuto:
– Eu te conheço há mais de vinte anos… Adeus.
A mão dela desliza pelo braço, toca na mão dele e o último contato é dos dedos se separando. Ela fica parada na calçada olhando ele seguir o caminho que vieram. Ele não olha pra trás. Quando dobra a esquina, ela resolve entrar no prédio.

Dez anos depois…
Murilo caminha descalço pelas ruas “calombadas” e históricas de Parati. Andou até chegar à beira-mar. O lugar estava vazio e tranquilo. Veio para o lançamento de seu quinto livro na Flip e decidiu ficar mais uma semana. Achou que merecia umas férias. Há seis anos largou a agência em São Paulo e foi morar na Espanha. Já podia viver como escritor. Está no terceiro casamento. Tanto a atual quanto as duas primeiras esposas eram bem morenas com cabelos pretos e encaracolados. Pareciam um pouco com Michelle, mas nenhuma tinha o seu cheiro. Sentou no muro que faz a contenção do mar e ficou um bom tempo olhando pro vazio. A mente também estava vazia. De repente, sentiu aquele perfume e teve que se equilibrar pra não cair do muro na água, ao procurar Michelle. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ela está pensando nele.
Michelle viu seus planos e sonhos irem por água abaixo quando faltava um mês para o casamento e seu noivo André, foi morto num assalto. Ela ficou em choque por quase dois meses. Aos poucos as coisas foram se ajeitando, e a vida seguiu. Numa tarde que saía da Biblioteca Nacional, lembrou de Murilo e sua história alucinada. Ficou curiosa em saber como estavam as coisas. E quando pensou que podia estar com saudades daquele beijo, afastou logo o pensamento. Quando se formou, voltou para pra casa, em Alto Paraíso. Não para dar as aulas que tanto queria, mas para cuidar do pai, que havia sofrido um derrame e passava o tempo todo na cama. Ela até tentou voltar à normalidade e namorou alguns sujeitos. Mas logo perdia o interesse. E logo se desinteressou do assunto. “Seu” Júlio havia melhorado nos últimos três anos, e ela estava um pouco alegre, pois ganhou algum tempo livre e pode enfim, levar adiante a idéia de ser professora.
Sentada na escada da enorme varanda da casa, que é toda de madeira, tentava afastar os cabelos que tapavam sua visão. Desde que voltou, parou de fazer o “alisamento japonês” e com o tempo, seus cabelos lindos e lisos voltaram a crescer lindos e encaracolados. Prendeu num coque simples e charmoso. Voltou sua atenção pro livro que estava lendo pela quinta vez: A Metade do Sonho, de Murilo Martins. Sempre que lia o nome “Fabianna” acabava rindo sozinha. A do livro tinha quase todos os defeitos e qualidades dela. Tentava não pensar em como Murilo podia conhecê-la tão bem, já que se encontraram apenas duas vezes. Mas, o que mais mexia com ela, é que no livro o final era diferente. Fabianna arriscou e resolveu ficar com o mocinho da história. E foram felizes para sempre.

Michelle solta um longo suspiro, abraça os joelhos e esconde a cabeça. Sempre chora no final. Ela comprime a lingua no céu da boca e se assusta ao sentir o gosto de Murilo. Então ergue a cabeça e olha pro imenso descampado da Chapada dos Veadeiros. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ele está pensando nela. Quando volta a baixar os olhos, uma lágrima rola em seu rosto e cai na última palavra do livro:
F I M

® Postado no Blogo antigo em 17.07.2005

NaturalMente

– Alôw, Márcio?
– Oi.
– Aposto que você não sabe quem está falando?!
Ele pensou “sua voz é inesquecível” mas falou:
– Sua voz é inconfundível, Joanna.
– Como é que você está?
– Melhor agora, ouvindo a sua voz…
– Ai que galanteador. Olha, eu preciso te falar uma coisa…
Márcio sentiu o mundo parar e começar a girar ao contrário, o tempo voltando. Voltando no tempo. Mas como um mero espectador que rebobina uma fita de vídeo. Até o ponto em que viu Joanna pela primeira vez.

Estava na poltrona 23 do ônibus Rio x Parati. Saída: 05:30. Rodoviária Novo Rio. Ela passava embrulhada por um monte de mochilas e bolsas, seguindo para a poltrona 34. Parou bem à sua frente, porque uma senhora “trancava” o corredor, uma vez que não lembrava se os óculos estavam na bolsa ou não. Ele estava distraído – e com sono – organizava suas coisas quando percebeu que alguém havia parado ali e olhava pra ele. Ficou um tanto incomodado e olhou na direção dela. Encontrou um par de olhos azuis que se destacavam naquela garota que tentava equilibrar bolsas, mochila e sacolas. Ela tinha os olhos que poderiam parecer tristes pra qualquer pessoa que o visse pela primeira vez, mas pra ele transmitiu serenidade. Mas agora esses olhos miravam na poltrona ao lado. Ela voltou a olhar pra ele, e de novo pro seu lado, ele percebeu um breve abrir de boca, num ar de surpresa. Olhou, curioso pra saber o que a teria interessado tanto. Era a edição que mais parecia uma revista de tão fino do conto “My Life in the Bull Ring with Donald Ogden Stewart, de Ernest Hemingway”, que estava por cima do discman e duas revistas.
Ela voltou a olhar pra ele e então seguiu pelo corredor. Ele ainda se inclinou um pouco virou a cabeça, procurando onde ela ia se sentar e achou graça quando a encontrou, toda atrapalhada tentando arrumar com aquele monte de coisas. Riu e achou melhor voltar a se preocupar com sua própria bagunça.

O ônibus seguia pela Rio-Santos e Márcio dormia com o livro caído, aberto em cima do peito. De repente abriu os olhos devagar e teve que se controlar pra não gritar com o susto de ver a garota sentada ali, ao seu lado, estudando-o. Quando viu que ele abriu os olhos, ela deu um sorriso tímido.
– Incomodo?
– A beleza nunca incomoda – ele disse, enquanto se endireitava na poltrona.
– Posso? – ela perguntou sem esperar pela resposta, se inclinou um pouco pegou o livro de Márcio. Olhou a capa, alisando-a como se fosse uma pintura. Passeou pelas primeiras páginas. Seus olhos brilhavam.
– Cara … mba. Como é que você já tem esse conto dele? É inédito!
– Trabalho numa livraria. Essa é uma edição especial e como você vê, é original. A edição traduzida só deve sair em uns 4 meses. Mas como sabe que é inédito?
– Porque eu já li tudo dele! – ela parece um pouco relutante mas devolve o livro ao dono – Ai, não vou agüentar esperar isso tudo…
– Se souber inglês, de repente eu posso até te emprestar.
– I say and I read some thing. I don’t leave myself very badly?
– Hum, it is not so bad? Te empresto assim que terminar. Mesmo achando que não deveria confiar uma raridade dessas a uma estranha que senta ao meu lado no meio da viagem e fica me espiando enquanto durmo…
– Ai desculpa. Meu nome é Joanna. E eu não costumo fazer esse tipo de coisa. Mas quando vi que você estava lendo Hemingway, tive certeza de que era gente boa. Embora, também não te conheça.
– Prazer, Márcio.
Os dois riram da graça da situação.
– Não vou te perturbar mais – ela se mexeu, indicando que ia levantar.
– Já disse que beleza nunca incomoda. Vem sempre pra Parati?
– É a terceira vez. Vim com uns amigos. E você?
– Já conheço Parati há algum tempo. Mas meu destino é Trindade. Conhece?
– Só de nome. Não é lá que tem a Praia dos pelados?
– É, lá tem praia naturista.
– Tae, tenho curiosidade de ver como funciona.
– Acho que não tem muito “de como funciona”. É só ficar sem roupa.
– Pra mim é super natural. É uma situação bem diferente.
– Diria muito diferente. Vocês vão ficar aonde, em Parati?
– Num hotelzinho bacana que a gente descobriu, perto do centro. Mas o quê mais tem nessa Trindade?
– O Paraíso… E mais um monte de coisas. O Caixadaço, a praia do meio, a “pedra que engole”, fora o pessoal que freqüenta. Sempre aparece um maluco gritando: ninguém dorme! às três, quatro da manhã, outros gritando Maria!. Mas acho que não tem como explicar. Só conhecendo.
– Quem sabe… Então, vou te deixar sossegado pra poder terminar de ler senão você não me empresta. Tchau.
– Tchau…

Duas horas depois, o ônibus chega ao seu destino. Márcio desce rapidamente e caminha até um bar e pede uma coca-cola enquanto acende um cigarro. Joanna aparece na porta do ônibus e logo depois surge o resto do grupo, que tem mais duas garotas e dois casais. Eles param na calçada, jogando as bolsas e mochilas no chão, formando uma estranha pilha. Márcio acena e ela corre até onde ele está. Ele lhe entrega o livro.
– Mas como vou fazer pra ter o livro de volta?
Ela escreve num guardanapo e entrega a ele.
– Você pode me ligar – ela agora repara na bagagem dele – Ou podia me seqüestrar e levar junto com você… senão estivesse indo acampar… eu sou alergia à picada de mosquitos.
– Hum, não me tente, Joanna. Além do que, eu tenho um ótimo repelente aqui.
– Deve ser legal. Mas eu tenho que correr que o povo está cheio de pressa. A gente se vê no Rio. Espero que você tenha um bom fim de semana.
Ela se aproxima e o beija no rosto, se despedindo.
– Eu também tenho que correr porque o ônibus deve sair logo. Curta bastante Paraty. Mas se quiser mesmo aparecer por lá, fique à vontade. Nessa época está bem vazia e é bem fácil de me encontrar na Praia do Meio. Tchau.

Márcio segue seu caminho, pensando se vai voltar ou não a ver o livro. A ver Joanna. E no esporro do chefe, se não voltasse a ver o livro. Fora o desconto do mesmo no salário, no fim do mês.
O ônibus ainda demoraria mais 20 minutos, segundo o motorista. Márcio se acomodou numa poltrona junto à janela, pegou o discman na mochila, apertou o play e fechou os olhos. Tentou relaxar ao som da música, mas os olhos de Joanna não saiam de sua mente. O problema é que além dos olhos, agora tinha a boca, as mãos, as pernas… Sacudiu a cabeça, tentando distrair o pensamento. Um pouco depois, notou que alguém se sentou na poltrona ao seu lado. Ficou curioso pra saber quem seria seu vizinho de viagem até Trindade e ao abrir os olhos não conseguiu conter:
– UWOU! Quer me matar do coração?
– Achei que a beleza não te incomodasse… – Joanna disse, sorrindo.
– Não. Não incomoda. Mas às vezes, assusta. O quê que aconteceu?
– Aquele convite ainda está de pé?
– Bom, convite não se retira, mas o que houve? E o seu pessoal?
– Ah, me estressei com a Dani. Minha irmã. Aquela loirinha que fica pendurada no namorado o tempo todo.
– Hum, essa que está entrando no ônibus agora?
Joanna inclinou a cabeça pra fora do corredor do ônibus e ao voltar à posição normal, a expressão do seu rosto era de estar muito chateada. A irmã parou ao seu lado e tentou controlar o tom da voz. Márcio percebeu que ela também não estava nada à vontade:
– Jô, pára de criancice e vamos logo que está todo mundo esperando.
– Daniela, eu tenho 23 anos, não estou bêbada nem drogada. Se eu disse que vou pra Trindade e amanhã encontro vocês aqui, acho que não sou bem eu que estou bancando a criancinha não.
A outra garota tinha uma expressão do tipo “mas você nem conhece esse cara, como pode se meter numa maluquice dessas?” Joanna conhecia bem a irmã. e logo disse:
– Ah sim. Dani esse é o Márcio. Márcio, essa é a Daniela. Minha irmã caçula que tem a síndrome de quero ser a irmã mais velha – Márcio até se mexeu na poltrona, com a intenção de cumprimentá-la, mas percebeu que seria ignorado, já que ela nem olhou pra ele – E eu já te falei que ele é bacana. Quem lê Hemingway não pode ser mal.
O motorista ligou o motor do ônibus, anunciando que ia sair logo.
– Você vai continuar com essa palhaçada? – perguntou a irmã.
– Dani quer saber, estou de saco cheio dessa palhaçada de você se meter o tempo todo no que eu faço ou deixo de fazer. Porra, enche o saco dizendo que eu não posso fumar meu bagulho porque o cheiro te enjoa, porque infesta o ambiente. E, no entanto fica lá trepando com o seu namorado o tempo todo, sem se importar se isso incomoda os outros ou não. Assim como às vezes, exagero na maconha, você exagera com o Marcos. Então ficamos assim, você trepa à vontade, eu fumo à vontade e amanhã vamos todos embora. Felizes e contentes.
Márcio não sabia se pedia licença pra sair do meio daquela confusão pelo caminho normal ou se saia logo pela janela mesmo. O rosto de Daniela ficou tão vermelho que ele deduziu que era uma mistura de vergonha, raiva e insanidade. Ela estava preste a explodir. Literalmente. Para sorte – e alívio dos três – o motorista ligou o motor do ônibus. Sinal de que sairiam logo. Deu as costas e disparou para a porta de saída do ônibus com a cabeça baixa. Joanna voltou-se para ele e, como se não tivesse acontecido nada, perguntou:
– E você tem algo contra?
– Contra trepar e fumar? Imagina…
– Ah você entendeu. Lá é tranqüilo?
– Hum veja bem, lá é super tranqüilo. Mesmo nos feriados e no verão, quando não cabe mais ninguém, continua chegando gente. E não me lembro de ter visto nenhuma briga por lá. Ah espero que o seu fumo esteja bem guardado, porque geralmente tem uma viatura da polícia revistando o pessoal, assim que a gente pega o acesso pra lá. Embora não acredito que eles não revistem ônibus, é melhor não facilitar.
Quando o ônibus saiu, Joanna ainda olhou pela janela, se debruçando um pouco em cima de Márcio. Viu sua irmã com o resto do grupo e deu um tchau. Podia se dizer que era um aceno debochado. A irmã da calçada, respondeu com um aceno mais direto, levantando a mão direita e erguendo o dedo do meio.

O ônibus seguia seu trajeto e os dois estavam com as cabeças encostadas nas poltronas, quase de frente um pro outro. Pareciam estar com o pensamento longe por causa do olhar vago, mas na verdade tentavam adivinhar o que o outro estava pensando. Marianna falou:
– Márcio, preciso te falar que embora eu tenha sido, como vou dizer… “atirada”, acho que a gente deve que conversar. Eu sou sincera pra caramba e por isso espero que os outros também sejam. E meio maluca também de ir pra um lugar que não conheço com alguém que mal acabei de conhecer. Não sou nenhuma vadia que sai transando por ae a torto e a direito. É que estou precisando de companhia porque levei um pé na bunda há duas semanas e minhas idéias ainda estão um tanto confusas. Então não quero saber de compromisso tão cedo. Mas isso também não tem como a gente escolher, né? Bom, finalizando, se tiver que rolar alguma coisa, tudo bem. Porque você até que é bonitinho. E como eu disse, quem lê Hemingway só pode ser gente boa.
– Tranqüilo. E eu nem ia querer que você viesse se pensasse que você fosse vadia. Se eu quisesse algo assim, não ia percorrer essa distância toda só pra isso. Mas confesso que te achei meio maluca. Além de linda, é claro.
– Ai pára…
– Sério. E seus olhos têm algo que me chamou a atenção, além da cor deles…
– Sei. Todo mundo diz que eu tenho um olhar triste.
– Hum, não diria triste. Pra mim eles parecem… melancólicos! E acho que dá um toque especial no “conjunto”.
– Ah, pára vai. Posso ver o que você estava ouvindo? – ela estica a mão na direção do discman. Ele lhe entrega e ela coloca os fones nos ouvidos e aperta o play. Enya cantando “Wild Child”

Ever close your eyes
Ever stop and listen
Ever feel alive
And you’ve nothing missing
You don’t need a reason
Let the day go on and on
Let the rain fall down
Everywhere around you
Give into it now
Let the day surround you
You don’t need a reason
Let the rain go on and on
What a day
What a day to take to…

Joanna ficou encantada com tudo. Começou a perder o fôlego na descida “Deus me livre”.
– E tem muito mais coisa. Mas acho que não dá pra ver tudo em dois dias.
– Ah, mas com certeza eu vou voltar aqui!
Seguiram para o camping onde Márcio costumava ficar. Rapidamente arrumaram tudo, e só então Joanna prestou atenção nas poucas pessoas que também estavam lá.
– Puta merda, ali o cara naquela barraca apertando um!
– Eu disse que aqui era tranquilo.
– Não. Aqui é o paraíso!
Ela correu pra dentro da barraca e logo depois saiu e sentou na frente da barraca. Márcio sentou ao seu lado e ficou admirando Joanna preparar o cigarro com rapidez.
– Você tem técnica.
– Ôô. A prática leva à perfeição.
Ela acende o cigarro traga várias vezes e entrega a Márcio.
Dez minutos depois, já não estão mais sentados e sim deitados no chão. Márcio levanta com alguma dificuldade e estende a mão para Joanna levantar.
– Acho melhor a gente dar uma volta porque senão daqui a pouco estamos voltando pro Rio e você nem viu nada.
Joanna segurou na mão dele, mas ao ser puxada, perdeu o equilíbrio e foi de encontro a ele. Na verdade os dois perderam o equilíbrio, desabando novamente no chão. Mas agora ela estava em cima dele. Os rostos bem próximos. E então explodiram em gargalhadas.
– Nossa Márcio, você tá muito chapado…
– Mas foi você que caiu em cima de mim.
– E então, tá rolando alguma coisa?
– Provavelmenteesperoquesimcomcerteza.
– Vem, vamos passear e ae você me mostra aquele monte de lugar que falou.
Dessa vez, ela se levanta primeiro e então estende a mão para puxá-lo.
– Vamos. Vamos levar mais pra fumar no caminho…
– Você também trouxe?
– Não. Não preciso. Já conheço alguns malucos e aqui sempre tem. Aqui tem de tudo.
Os dois seguiram em direção ao Caixa-d’aço.

Trindade brindou Joanna com uma noite de céu limpo e enorme. Coberto de estrelas. Haviam mais ou menos dez barracas no camping. E umas seis fogueiras próximo à elas. Alguém tocava Djavan no violão, e um pequeno coro de vozes entoava “Correnteza”. Joanna não acreditava no cenário à sua frente. À sua volta. Parecia montado. Não acreditava que existisse algo assim, tão perfeito. Estava sentada na varanda da barraca quando Márcio voltou do banho. Já haviam comido algumas bobagens e passeado bastante.
– Mas não esqueça que vamos à tal praia dos pelados amanhã, hein?
– Putz você quer mesmo ir lá? Vai ficar mesmo sem roupa mesmo?
– Claro que vou. Se a praia é pra pelado, não vejo sentido em usar nada. Porque? Você tem algum problema? – ela fez um gesto com o indicador e o polegar, perguntando se era pequeno.
– Bom, não ouvi nenhuma reclamação até agora. Meu problema é que não consigo me “controlar” nesse tipo de situação. Ainda mais se você ficar sem roupa mesmo… dae que pra não dar vexame e ser expulso, sou obrigado a ficar deitado de costas pro sol ou dentro d’água o dia todo. E quanto ao tamanho, você poderá conferir amanhã, lá na praia… ou entrar pra barraca comigo.
Eles entram e se sentam no chão. A situação parece estranha. E engraçada. Um querendo pular no pescoço do outro e, no entanto parecendo embaraçados. Márcio pede para ela diminuir o gás do lampião que está mais próximo dela, mas ela diz que não sabe mexer naquilo. Ele se estica um pouco e deixa o interior da barraca com uma claridade mínima. O suficiente para Joanna vê-lo se sentar novamente e então aproximar seu rosto do dela. Nenhum dos dois falou mais nada. O cenário ficou mais inacreditável ainda. Tudo estava ótimo. Calmo. Suave. Joanna não entendia o que era “aquilo” que invadia seu peito, inflando, parecendo que ia explodir. Achou que devia ser a tal felicidade que sempre ouviu. Ou algo bem próximo disso.
O som que vinha lá de fora agora era “Nem um dia” do Djavan.
Ela parecia querer experimentar todas as sensações possíveis, já que uma hora depois – de uns baseados e meia garrafa de tequila, estava com Márcio dentro da água. Pelados. Ela disse que queria fazer a céu aberto e realmente sentiu tudo de novo. Diferente de novo. O mundo parecia rodar. Não sabia mais se ainda estavam na água, na areia, na barraca ou na rua principal da Vila. Só não queria mais sair dali. Nunca mais. Joanna procurou gravar aquele momento no lugar mais seguro de sua memória, para o caso de nunca mais voltar a sentir aquilo tudo de novo, ter a certeza de que existe ela sentiu um dia.

No dia seguinte, tomaram café e foram para a Praia da Figueira. Márcio comparava Joanna com uma criança de três ou quatro anos, que anda pelada em qualquer lugar sem se importar com pudor. E Joanna se divertia com Márcio olhando pro céu, pra não reparar nela ou nas outras mulheres que estavam lá sem roupa. Mesmo assim ele teve que correr pra água várias vezes.
Almoçaram e desmontaram tudo. Os olhos de Joanna agora pareciam mais melancólicos ainda, agora que se anunciava a despedida daquele fim de semana maravilhoso. Chegaram em Parati e logo Joanna encontrou sua irmã e seus amigos. Daniela procurou agir como se não tivesse acontecido nada, já que estava estampado no sorriso de Joanna o quanto tudo havia sido bom.
Os dois voltaram juntos, abraçados e sonolentos até o Rio de Janeiro. Despediram-se na Rodoviária.
- Bom, então é isso. A gente se vê.
- Claro. Ainda mais que eu tenho que te devolver o livro…
- Não. A gente se vê de novo, mas fica com o livro de presente. Já que ganhei um presente maravilhoso desses, é minha obrigação retribuir.
Joanna enlaçou o pescoço dele com os braços e deram um beijo demorado.
- Imagina. Você também foi um presente excelente. Tchau.
- Tchau.

E assim os dois partiram. Voltando às suas vidas normais.
Dois dias se passaram desde o adeus na rodoviária, quando Márcio atendeu o telefone. Desligou o “canal” que o fez rever todos os momentos que passaram juntos e prosseguiu com a conversa:
– Sou todo ouvidos.
– É que infelizmente a gente não pode se ver mais…
Márcio não esperava aquilo. Sentiu como se tivesse sido atropelado por um ônibus e jogado longe.
– Hã? O…o que foi? Foi alguma coisa que eu fiz? Falei alguma besteira?
– Não! Não pensa nisso. Você foi ótimo. Você é ótimo – ela fez uma pausa e tomou fôlego – É que eu voltei com meu namorado…

® Postado no Blog antigo em 04.12.2004

Game Over

Daniel sempre fazia o percurso de casa pro trabalho, do trabalho pra casa entretido com seu PSP. Aquela coisa de viagem o entediava e a melhor coisa que fez foi comprar aquela maquininha. Vez ou outra apertava o Pause para descontrair, mas logo voltava ao jogo. Geralmente retornava para casa no mesmo ônibus em que voltavam vários estudantes. E numa dessas voltas notou Camile. Loira, lábios carnudos, bem gostosinha. E junto dela, Aline, morena, cabelos pretos cacheados. Não pôde reparar se ela também era gostosa porque quando seus olhos cruzaram com os dela, sentiu algo diferente. E ela nem tinha aquela coisa de olhos verdes ou azuis. Mas seus olhos pareciam brilhar. Voltou ao seu joguinho, mas toda hora parava e ficava admirando Aline.
Camile sempre descia no meio do caminho, Daniel descia no ponto de sempre e Aline seguia viagem. Não fazia nem idéia de onde ela morava. Um dia reparou que ela também o olhava. E que ela também era bem gostosinha. Eis que Daniel tinha dois problemas: depois que Camile descia do ônibus, Aline assumia um aspecto de cansaço, dor de cabeça, estresse, alguma coisa de “chateada” que se transformava num obstáculo para qualquer tentativa de aproximação, pois a mão dela na testa, apoiando a cabeça parecia dizer: “Ei, não me encha o saco. Não vê que não quero conversa?” ou qualquer coisa assim; E, para piorar, ele era extremamente tímido. “Como é que eu chego nela? Vou falar o quê: tudo bom? Você pega sempre esse ônibus? Cacete!” E novamente descia no seu ponto. E Aline seguia no ônibus.
Numa terça-feira, ele está no ponto, empolgado com o jogo que acabara de comprar: Daredevil. Enquanto as pessoas na fila xingam, reclamando da demora, ele nem se preocupa se o ônibus vem ou não. Só quer passar para a próxima fase. Como fazia sempre, apertou o Pause e girou a cabeça num movimento circular, tentando relaxar os músculos do pescoço que ficavam doloridos por culpa do jogo. Tomou um susto quando viu Aline e sua amiga paradas bem perto dele, na fila dos estudantes. E outro maior ainda quando ela deu um sorriso e ergueu levemente as sobrancelhas, cumprimentado-o. Daniel não sabe se respondeu também com um sorriso, se inclinou levemente a cabeça ou se acabou fazendo uma careta pra ela.
Tentou voltar a jogar mas perdeu feio pro seu oponente virtual. Para alívio dele o ônibus chegou e logo todos estavam entrando. Estava abobado, ficando vidrado naqueles olhinhos brilhantes. “Só faltava essa. Só eu mesmo pra me apaixonar por uma garota que não sei nem o nome”. Mas, depois daquele sorriso, tenho que fazer alguma coisa. Hoje eu falo com ela!” Ficou ansioso, aguardando o ponto em que Camile normalmente descia e então aproveitaria o lugar que ficaria livre. “É isso, vou na cara-dura!”.
Mas hoje, Camile não desceu. Parecia que ela seguiria até a casa de Aline para buscar algo, para dormir lá. “Ou o diabo que for. Tinha que ser hoje?” Pra completar seu suplício, entrou um bêbado no ônibus e começou a agir como todo bêbado, falando alto, mexendo com os outros. E o sujeito resolveu sentar justamente do lado de quem? Do pobre Daniel. Ele falava, gritava, gesticulava exageradamente. Exalava um cheiro acre de dias sem banho e dias se embebedando. As meninas riam e Daniel não sabia se era dele ou pra ele. Ficou tão perturbado que acabou descendo 5 pontos antes do seu.
Duas semanas se passaram e Daniel não voltou a ver Aline. Numa quarta-feira, chegou no ponto e o ônibus já estava lá. Entrou e se acomodou num dos poucos bancos vazios. Apertou o Start do PSP e começou mais uma partida. Viagem tranquila, estava quase zerando o jogo e deu uma espiada para ver onde estava. “Quase chegando em casa”.
Os olhos de Aline surgiram do nada em sua mente. Percorreu o interior do ônibus, distraído, pensando se de repente não teria passado por ela sem notá-la. O que era pouco provável. Mas então viu Camile, 4 fileiras de bancos à frente de onde estava. Sozinha. Embora as duas sempre andassem juntas, olhou todo o ônibus procurando por Aline, mas ela não estava lá. Curiosamente a loirinha passou de onde sempre descia, e ele deduziu que ela só podia estar indo na casa de Aline. Num impulso, resolveu não descer no ponto de sempre. Quando Camile desceu, teve que correr para também saltar naquele ponto. Assim que o ônibus partiu e ela ía atravessar a rua, ele tocou em seu braço:
– Oi.
– …oi!
– Então… cadê a sua amiga?
– Aline?! Tá doente. Tô indo na casa dela e você?
– Eu o quê?
– Está indo pra onde? O seu ponto era lá atrás, não?
– Er… era. É que eu queria saber dela e nem sei de onde veio a ideia de vir atrás de você…
– Mas você vai na casa dela? Acho que o pai dela não vai gostar muito.
– Não! Era mais pra saber dela. Foi uma ideia idiota mesmo. É melhor ir embora.
– Já que você nem perguntou o meu nome, também não vou perguntar o seu…
– Ae caramba. Desculpa. Sou Daniel. E você…
– Camile.
– E o da sua amiga você já disse que é Aline…
– Isso. Ela mora ali – ela aponta trocando os cadernos de mão e reparando que ele tamborilava os dedos na perna mostrando nervosismo – virando a esquina é a terceira casa desse lado mesmo.
– Ah, legal. Bom, eu já vou indo. Prazer em te conhecer.
– Mas você veio até aqui e não vai lá falar com ela?
– Imagina… Você acabou de falar que o pai dela é bravo.
– É. O seu Roberto fica bem zangado com esse tipo de coisa. Acho que todo pai é ciumento, ainda mais com filha única. Mas ele é super gente boa. E tem que ele só chega do trabalho lá pelas nove.
– Você podia ter falado isso antes.
Daniel ficou balançando o corpo, como um barco solto na tormenta, pra frente e pra trás. Camile notou e riu.
– Ai meu Deus. É melhor você ir embora mesmo.
– Porque?
Ela segurou seu braço esquerdo com a mão livre, tentando equilibrá-lo.
– Porque você é muito tímido.
– E… e tem algum mal nisso?
– Pior que tem.
Camile, ainda segurando seu braço, chega bem perto dele. Os rostos ficam perigosamente próximos. Ela sente o corpo dele tremer. Aperta Daniel contra o seu corpo e cola sua boca na dele. O corpo dele agora vibra. As mãos que antes seguravam o PSP, agora estão enlaçadas na cintura dela. O brinquedo está caído no chão. Camile se afasta um pouco e solta a respiração. Daniel está aturdido sem saber o que aconteceu. Ela apenas fala:
– É que eu me descontrolo perto de tímidos…

® Postado no Blog antigo em 24.09.2004

Trilha Sonora

Leandro e Dianna estavam saindo há pouco mais de um mês. Já haviam transado umas quatro vezes.
Estranhou a ligação dela querendo vê-lo em plena terça-feira, já que só estavam se vendo nos fins de semana. Disse que tinha duas surpresas para ele.
Estava se encantando com a pequena. Sempre simpática, bem-humorada, ótimo papo. E linda. As coisas estavam indo muito bem. Os dois praticamente gostavam de tudo que o outro gostava. Até na cama era ótima. Quanto tocou a campainha e ela abriu a porta, ele notou o silêncio na casa. E um tanto escura. E uma fragrância doce.
Tinha nos lábios um sorriso fascinante e um batom clarinho. Puxou-o pela mão pra dentro e trancou a porta.
“Não tem ninguém em casa. Meus pais foram levar meu irmão no aeroporto e como o vôo dele só sai às duas da manhã, eles não chegam aqui antes das três…”
“Hummm, vejo que a mocinha está cheia de más intenções”
“Eu diria que são as piores possiveis”
Foram pro quarto de Dianna e enquanto ela foi ligar o som, ele se jogou na cama e tirou a blusa e os sapatos. Quando ela se aproximou, estava só de calcinha e sutiã. Beijos. Mordidas. Apertos…
Quando Passive agressive estava terminando, ela olhou pra baixo e não conseguiu segurar uma risada quando viu a cabeça dele enfiada no meio de suas pernas, todo descabelado, estava engraçado. E muito bom…
“Leandro…”
“Hamn???”
“A segunda surpresa é que eu descobri uma coisa hoje à tarde, enquanto tomava banho e ouvia Placebo”
Ele teve que parar o que estava fazendo, mais pela curiosidade. Ela o puxou pra cima dela e sussurrou em seu ouvido:
“Eu estava brincando quando começou uma música e eu fiquei descontrolada. Nunca senti tanto tesão e não podia esperar até o fim de semana pra ver o que acontecia se estivesse acompanhada.”
Leandro logo se animou e se ajeitou. Ela pegou o controle do som e apertou algumas teclas rapidamente. A música começou a tocar e o número digital do volume que marcava 10 chegou até o 22. Ela largou o controle no chão, fechou os olhos e relaxou. Leandro estava achando aquilo tudo engraçado. E excitante.
Since we’re feeling so anesthetised
In our comfort zone
Reminds me of the second time
That I followed you home
We’re running out of alibis
From the second of May
Reminds me of the summer time
On this winter’s day
See you at the bitter end [x2]

Leandro notou que ela estava diferente, parecia entrar em extâse. O corpo mole, lânguida. Ele não resistiu e perguntou porque aquela música. Ela respondeu, quase sussurrando:
“Nem imagino… o que significa a letra… é a música… o ritmo vai aumentando… aumentando…”
E realmente, o ritmo da música aumentava e os movimentos do corpo de Dianna também.
Quentes e intensos. E isso acabou afetando Leandro também. Estava tudo entrando num sincronismo espantoso.
Every step we take that’s synchronized
Every broken bone
Reminds me of the second time
That I followed you home
You shower me with lullabies
As you’re walking away
Reminds me that it’s killing time
On this fateful day
See you at the bitter end [x4]
From the time we intercepted
Feels alot like suicide
Slow and sad, getting sadder
Arise a sitting mine
[See you at the bitter end]

Parecia que os dois se fundiram num só. Ondas de tremor percorriam seus corpos. Ela não entendia o que ele dizia. Ele não entendia o que ela gritava. Pareciam estar brigando. Uma batalha pra ver quem chegava ao fim primeiro. Os dois se preparavam para o final que, ao contrário da música, não parecia ser amargo.
I love to see you run around
And i can see you now
Running to me
Arms wide out
[See you at the bitter end]
Reach inside
Come on just gotta reach inside
Heard your cry
Six months time
Six months time
Prepare the end
[See you at the bitter end]

Se fosse ensaiado não seria tão perfeito. Os dois terminando juntos. Junto com o fim da música. Leandro caiu pro lado. Aquilo tudo foi muito louco. Rápido. Realmente ele já havia experimentado de tudo em matéria de sexo. Com mais de uma garota. Drogas. Lugares. Mas nenhuma sensação havia sido como aquela. Virou a cabeça pro lado e viu Dianna com um sorriso luminoso no rosto.
“Nossa, isso foi espetacular”
“Foi. Mas eu acho que vai ficar melhor ainda”
Leandro não entendeu e quando ia perguntar como, o som voltou a tocar. A mesma música.
“É que eu programei pra repetir”
“Ei, você só está esquecendo que o meu aparelho não é igual ao seu som, que em pouco tempo repete a música duas vezes. O meu demora um pouco mais.”
“Hummm, olha só, é que eu programei pra repetir seis vezes…”

® Postado no Blog antigo em 16.08.2004

O Dia do Amigo

02:43. O telefone toca até acordar Gabriel.
– Humm, alôôô – ninguém diz nada do outro lado, só se ouve uma música alta. Som de boate – alô! Vou desligar hein?!
– Oi Gabriel…
– Oi, Giovanna! Tinha que ser você. O quê foi?
– Me leva pra casa…
– Você está aonde?
Gabriel desliga o telefone e sai da cama. Pouco depois chega no local que Giovanna disse. Ao se aproximar da portaria diz ao segurança que precisa entrar só pra buscar uma amiga que está “mal”. O sujeito chama outro segurança e pede que o acompanhe pela boate, que não está nem cheia, nem vazia, mas ele sabe onde ela gosta de ficar e vai direto pra lá, encontrando-a sentada nos degraus da escada do mezanino. Ela não o vê chegar, porque está com a cabeça apoiada nos braços, que estão apoiados nos joelhos, quando sente ele alisar seus cabelos e levantar sua cabeça, segurando em seu queixo. Ela levanta, perde o equilibrio e seu corpo cai pra frente. Ele a abraça e então caminham para a saída.
– Ai Gabriel, você é o meu anjo protetor…
– Só você pra me tirar da cama a uma hora dessas.
– Tá zangado comigo? Fica não… Eu adoro você.
– Você está de carro?
– Tô. Só não me pergunta aonde ele está porque eu não me lembro.
Ele pega o chaveiro na bolsa dela e aciona o alarme, que faz o carro responder, não muito longe deles.
Os dois entram no carro e ele estranha Giovanna não ter ligado o rádio. Ela apenas encosta a cabeça no apoio do banco e fica com ar de entediada. Vinte minutos depois ele pára o carro em frente à casa dela.
– Entra um pouco.
– Já está tarde. É melhor eu ir andando.
– Não! Entra vai… Preciso conversar com você.
Assim que entram, aquela Giovanna calada, distante, parece ter ficado no carro. Essa parece agitada. Liga o som e começa a dançar. Gabriel procura o sofá e deixa o corpo desabar nele. Ela começa a cantar a música, misturando as vozes. E ela tem uma bela voz:
… I bare my cross, my soul, myself
I forgive… but i never forget
I’ve been put upon this earth in female form
But i can handle myself with the best of you
As well as the worst and i often have
I have the right to remain silent
But i choose to speak, sing, scream
I am lips, hips, tits… i am the power of a woman
Strong like music …
e pára bem perto dele, que dá um tapa com a mão esquerda no espaço vazio ao seu lado. Ela senta e então ele pergunta:
– E então, minha doidinha, o que você quer?
– Quero transar.
Gabriel fica aturdido. Sobrancelhas erguidas com aquele ar de incredulidade que ela conhecia tão bem.
– Você nem está tão ruim assim. Que brincadeira é essa agora?
– Eu tô carente. Precisava da sua companhia. E resolvi unir o útero ao agradável. E até queria saber também, porque que você nunca me cantou? Eu sou tão ruim assim?
– Giovanna, vai à merda! Sempre te disse que você é linda. Sendo que isso nem é preciso, porque você está cansada de saber.
– E?
– E o quê mulher? Quando a gente se conheceu, lógico que eu fiquei afim de você, só que nunca forcei nada porque você não ía me dar bola.
– Então, tae a sua oportunidade…
Ela desabotoa a frente da blusa e se livra dela rapidamente, ficando só de sutiã. Preto. Meia-taça. Seios médios. Tenros. Gabriel fica inquieto e se ajeita no sofá. Não consegue desviar os olhos do colo dela.
– Ai caramba! porque você está fazendo isso?
– Vocês são engraçados. Homem é tudo galinha e de repente fica ae com essa coisa de “quê isso?”
– Porra Gi, a gente é amigo há um tempão e duma hora pra outra você sente atração por mim? é esquisito…
– Tá bom. Adoro você. Você é o meu melhor amigo, sabe de coisas que nem minha família sabe. Eu sei que posso contar com você pra tudo, até pra matar essa curiosidade. E não acredito que isso vá estragar nossa amizade.
– Eu acho que estraga mas também acho que o risco vale à pena, mas me diz uma coisa, que curiosidade?
– Ah, deixa pra lá…
– Nops. Você quer me usar como objeto sexual e nem quer dizer o porquê?
– Tá bom. Sabe a Ana, depois que vocês ficaram, ela disse que você era “quente”, e eu fiquei curiosa em saber se é verdade…
– Rá, tá cada vez pior. Mulher fazendo propaganda? E a favor? Nunca ouvi falar nisso…
– Ôw! A gente só fala mal quando o cara é ruim mesmo. Quando é bom, a gente não fala nada pra não instigar as outras. O que não é o seu caso, já que ela sabe que você não pára com ninguém.
– Assim você me magoa – diz Gabriel, brincando.
– Ai, um galinha sensível. E então, já resolveu o que vai ser?
– Isso não vai acabar bem.
– Gabriel, cala a boca e me beija!
.
.
Giovanna acorda e vê Gabriel sentado na poltrona que fica ao lado de sua cama.
– Bom dia.
– Bom dia. Acordou que horas?
– Ainda agora. Preciso ir embora, mas olhei você dormindo e não conseguí me mexer.
– Ai pára com isso.
– E então. Matou sua curiosidade?
– Ha-ham.
– E então? Foi bom ou você vai processar a Ana por propaganda enganosa?
– Nah, foi ótimo. Melhor do que esperava.
– E como é que a gente fica?
– Phoda isso viu? Ai Gabriel, você é adorável, adoro sua companhia. A gente gosta praticamente das mesmas coisas e se conhece tão bem. E agora, descubro que é bom de cama. Porquê que eu não me apaixono por você?
– Seria porque você só escolhe os caras errados?
– Ah, mas namorar é foda! Aposto que se estivéssemos namorando, quando te liguei ontem você me mandaria à merda, que eu saí sozinha porque quis e voltaria a dormir…
– É. Pode ser que sim. Pode ser que não… A gente só vai sabe se tentar.
– É, pode ser. Mas antes de resolver qualquer coisa, porque você não vem até aqui, tentar me convencer mais um pouco do quanto pode ser bom???

® Postado no Blog antigo em 20.07.2004

Santo Antônio e São João

Polianna estava estática em frente ao micro. Na tela, um relatório financeiro que tem que estar pronto em 40 minutos para a reunião das 15:00 horas. Mas ela já não vê mais isso, só vê as fagulhas que sobem em espiral, embaralhadas, numa confusão de gritos das outras crianças eufóricas, atirando pedaços de madeiras na fogueira, fazendo aparecer mais e mais daqueles “vagalumes” mágicos que somem quando sobem ao céu. Polianna inclinava a cabeça toda pra trás, olhando o céu mais cheio de estrelas do mundo. Por mais que tenha procurado, nunca encontrou um céu tão mágico, gigante e infinito como o da cidade em que nasceu e morou até dez anos atrás, quando tinha então 12 anos. E era isso que ela via agora no monitor. Podia até sentir a brisa da noite, ouvir sua mãe gritando pra ter cuidado com o fogo enquanto ela e as outras crianças rodavam em volta da fogueira. O velho Tião tentava organizar a formação para o ensaio da quadrilha. E Marquinhos a chamando para mostrar um formigueiro que encontrou, perto da mangueira. Olhavam a fileira ordenada das formigas marchando para dentro do formigueiro, incessantemente. E de repente ele a puxa pela mão para trás da árvore e pede para beijá-la. Seu coração parecendo que ía parar, ao mesmo tempo que disparava, e ela sentía como se ele fosse sair do peito. Tudo rodando… E aquele primeiro beijo… Que lhe deu uma sensação de moleza no corpo… E o primeiro namorado. Que ela deixara pra trás, quando os pais chegaram com a notícia da mudança para uma outra cidade, outro Estado. E a promessa de que seria o melhor pra todos, já que ela e o irmão poderiam estudar em escolas melhores, conhecer muito mais gente, um bom emprego para o pai.
E nesses 10 anos, o que ela viveu foi um grande número de mudanças de casas, apartamentos, vizinhos que mal se falavam, pessoas mal-humoradas, sem tempo pra nada.
Sentía um vazio que não sabia explicar o que era. Tentou preenchê-lo com os muitos namorados que teve. Muito sexo. Drogas. Lugares. Empregos – esse era o oitavo. E nada que fizesse suprimia aquele vão no peito.
Até aquela tarde, quando do nada, veio essa visão e a lembrança da infância. Saiu do transe quando Marta, sua chefe, a chamou pela terceira vez, quase que gritando o seu nome:
– Polianna! O que está acontecendo que não terminou ainda esse maldito relatório? A reunião começa em meia hora e isso ainda não está pronto?
Ela sacudiu a cabeça e olhou para a chefe parada à sua frente com aquela expressão de interrogação.
Desligou o monitor, pegou suas coisas e quando passou perto da chefe, disse:
– Vai se fuder.
No dia seguinte, pegou o primeiro ônibus e voltou até a cidade que ressurgiu em sua mente na tarde anterior. No caminho, sentía toda a ansiedade e expectativa como no primeiro beijo. Quando desceu do ônibus, não reconheceu a cidade. Muita coisa havia mudado. Passou o dia andando, indo a todos os lugares que lembrava. Reencontrou algumas pessoas e quando viu que começava a escurecer seguiu até à mangueira, que já estava bem velha. Deitou embaixo dela e ficou vendo a escuridão tomar conta do céu, e as estrelas surgindo. Uma aqui, outra ali. Agora sentía o peito cheio. Preenchido. Olhou ao redor e se viu novamente ali, com as outras crianças, correndo em volta da fogueira. Deu a volta na árvore, procurando o formigueiro e viu talhado no tronco: “Polianna x Marcos”
Não sabia ainda o que ía fazer dali em diante. Voltar pra casa, voltar pra cá? Mas nada disso importava, pois ela resgatou algo que havia perdido, quando ainda nem tinha conhecimento do que era. E teve uma única certeza:
– Puta merda. Ser feliz é tão simples…

® Postado no Blog antigo em 23.06.2009

Chamada Local

Foi amor à primeira vista. Ao menos da parte dele. Joan se encantou com a estudante de expressão séria. Os olhos tinham algo diferente, que lhe dava uma expressão triste. Mas era muito bonita. Encontrava-a quase sempre no ponto de ônibus sempre por volta das seis e meia da tarde. Saía do escritório de contabilidade onde trabalhava, e ela da escola. E íam embora juntos.
Nunca se falaram, até porque Joan era muito tímido e o ônibus quase sempre saía cheio. Mas também nunca sentaram juntos. Para ele já estava bom poder só admirar aquela moreninha que estava sempre de rabo de cavalo. Cabelos pretos. Compridos. Joan fantasiava aqueles cabelos soltos, caindo sobre o rosto dele. Imaginava outras coisas também, já que ela era gostosinha. Coxas roliças.
Ah, eu nessas carnes… Joan suspirava.
E, Marcelle começou a reparar mais nele, talvez de tanto que ele olhava. Não sabia dizer o que era, mas alguma coisa chamou sua atenção. Desconfiava que devia ter uns trinta. Sem saber se deixaria ele se aproximar, ficava confusa pois tinha convicção de que se um dia viesse a se envolver com alguém tão mais velho, seria por ter perdido o interesse em garotos, moleques. Ou seja, alguém que tivesse mais experiência. Mas Joan tinha a cara dos moleques que estudavam com ela. Ao contrário dele, ela ao menos já sabia o seu nome. E isso era outra coisa que a ligava a ele. A primeira vez que ouviu o nome, achou super estranho. Joan?
Naquela sexta-feira, Joan entrou na kombi que fazia lotação e sentou no banco do fundo. E como sempre, abriu seu livro. Todo dia era assim. O carro sempre parando em alguns pontos. Sempre entrando um, saindo outro. Joan seguía alheio a tudo. Até que numa determinada altura, quando a porta abriu para algumas pessoas entrarem, algo fez com que ele parasse a leitura. Ficou sem ação quando a viu entrando. Ela também o viu, e entrou sorrindo. E foi sentar justo no banco do fundo. E foi sentar justo do lado dele…
– Oi…
– Ehhrrr, oi.
Joan passava de uma folha à outra do livro. Não conseguiu ler mais nada. E também não conseguiu ir além do oi.
Fala alguma coisa logo idiota… Ele começou a suar.
Caramba, ele não vai falar nada? Ela começou a desistir. Tentou dar uma última chance, olhando pro livro dançando nas mãos dele:
– Que livro é esse?
– Cem anos de solidão. Já leu? – Ele vira a capa para ela.
– Já. 2 vezes. Adorei. Tá gostando?
– Muito. Esse autor é ótimo, você… – Joan é interrompido com o celular dela tocando.
– Oi Lívia… hein? Brigaram? Calma Lívia. Não chora porque eu não estou entendendo nada… Bobagem, já já vocês voltam…Eu sei mas você sabe como ele é…
Joan tentou voltar às páginas de seu livro, mas o pensamento estava disperso. Tentava pensar em algo, tomar coragem e convidá-la para um chopp, um cinema. Mas a conversa não parava. Além do que, ele não tinha um centavo sobrando pra tais extravagâncias. Fim-de-mês. Salário rídiculo.
Acabou achando até melhor. Marcelle se despediu da amiga e desligou o celular. Pediu para o motorista parar no próximo ponto. Achou que as coisas não íam muito bem, além do que tinha que descer logo. Como só haviam os dois no banco de trás, resolveu arriscar e “distraídamente” deixou o celular cair no banco e antes de saltar da kombi se despediu dele:
– Tchau.
– Ehrr, tchau…
Quando Joan viu o telefone nem deu tempo de qualquer reação, já que o motorista saiu arrancando pra escapar do sinal, que já ía fechar. Ele guardou o celular no bolso e seus olhos brilharam. Sentiu que era uma oportunidade única e agradeceu aos céus pelo acontecido.
Após o almoço, saiu para caminhar e ver os jornais e revistas na banca próxima de onde trabalhava. Ao chegar lá encontra um velho conhecido.
– Cabeça! Que bom te encontrar. Seguinte, tô precisando de um favorzão teu.
– Fala doido.
– Seguinte… – Joan pediu para seu amigo esperar enquanto atendia o telefone – Alô.
– Errr oi. Você achou meu celular no banco da kombi, hoje de manhã?
– . . .
– Alô, não lembra de mim hoje de manhã na kombi de Benfica?
– Seu celular? Benfica? Gata, eu moro em Copacabana e comprei esse telefone há mais de dois meses.
Você deve ter ligado pro número errado… – Joan desligou o telefone.
– Seguinte ô cabeça, me dá cento e cinquenta ae no aparelho.
O sujeito pega o telefone, examina, aperta algumas teclas e diz:
– Cinquenta.
– Vai à merda. Pô é um Sony Erycsson.
– Quem se importa com o aparelho? É roubado mesmo…
– Roubado não! Achado.
– Tá bom. Setenta e tamos conversados.
– Fechado.
. . .
Terminado o expediente, Joan segue seu caminho normal até o ponto do ônibus. Ele sempre volta pra casa de ônibus. Primeiro para poder ler seu livro, segundo pra tentar a sorte de ver Marcelle. E ela está lá, com uma expressão aflita que se transforma em alívio ao vê-lo.
– Oi.
– Oi.
– Escuta, eu acho que deixei meu celular no banco da kombi. Diz que você achou, por favor…
Joan faz uma cara de que não faz idéia do que ela está falando.
- Nossa, te juro que dava tudo pra ter encontrado, só pra não te ver assim – Ele faz uma cara pensativa – Hummm, sabe que entrou um sujeito, um ponto antes do meu, e praticamente se jogou no banco? Eu achei estranho mas nem me toquei. O safado deve ter sentado em cima do aparelho…
– Filho da puta! Ai desculpa, mas é que eu estou com muita raiva.
– Imagino. Mas olha só, eu nem sei o seu nome.
– É Marcelle.
– Joan. Pôxa, não dá nem dizer que é um prazer por causa disso que aconteceu contigo… Mas olha só, não vai resolver seu problemas mas, poderia ajudar se a a gente fosse assistir ao novo filme do Harry Porter amanhã? E não se preocupe porque eu vou me comportar. Prometo…
Ela olha pra ele com um ar de interrogação. Com a estória toda do telefone ele acabou pegando Marcelle desprevinida.
– É, até que pode ser bom…

® Postado no Blog antigo em 09.06.2004

Valentine's Day

21:00. A campainha toca. Dou uma última olhada pra ver se está tudo em seu devido lugar. Diminuo a iluminação, deixando um clima mais agradável. Ligo o som e corro ao seu encontro. Ao abrir o portão, a visão me inebria: Ela está linda. Cabelos soltos. Perfume delicioso. Vestido preto justo. Frente única. Reparo bem quando ela entra. Adoro suas costas.
- Eu não mereço tanto…
Ela pára de um jeito que nenhuma pára, olhando por cima do ombro esquerdo e quase sussurra:
- Claro que merece.
Engulo em seco. Nos sentamos e enquanto ajeito seu cabelo pra trás da orelha e aliso seu rosto. Nos beijamos. Seu beijo é macio, quente. Ela me suga. Me prende. Tenho que me controlar pra não perder a cabeça e acelerar as coisas. Mas é difícil parar de beijá-la. Pergunto o que ela quer beber. "Vinho". Vou em busca da garrafa e das taças. Quando volto, ela está próxima do som. Entrego uma taça à ela e brindo:
- Então, feliz dia dos namorados.
- Tin tin. Acho que está na hora de dar o seu presente.
Ela toma um gole e coloca a taça num lugar qualquer da estante. Apoia as mãos em meus ombros e me faz andar de costas até que cair sentado no sofá. Ela se inclina e me beija. Se afasta um pouco e me entrega o controle do som:
- Sade?
- Sim. Sade Adu.
- Adoro a voz dela. Põe a música que você mais gosta…
Nem cabe dizer que gosto de todas as músicas dela. Aperto o botão até chegar à faixa onze. No ordinary love. Ela se afasta e faz um gesto com a mão, para eu ficar sentado, quieto. Fecha os olhos e entra no ritmo da música. Balança a cabeça, lentamente pros lados. Dançando de forma lenta e sensual. Essa mulher não existe! Fica de costas e solta o pequeno nó do vestido, atrás da nuca. Dae, fica de frente pra mim e deixa o vestido deslizar pelo corpo, ficando só de calcinha. Me brindando com aquela visão.
É difícil ficar parado. A respiração acelera. O coração vai a mil! A vontade é de avançar sobre ela o mais rápido possível. Mas sou um bom aluno, afinal foi ela quem me ensinou a esperar até a hora certa. A saborear todas essas sensações ao máximo. Não posso decepcioná-la. Até porque aprendi realmente a gostar dessa ansiedade, do desespero, da urgência de tocar naquele corpo. Ela vai até o outro sofá, se deita e estica as pernas para cima. Tira vagarosamente a última peça. Termino de beber o vinho e largo a taça no chão, enquanto ela levanta, vem em minha direção e senta de frente, no meu colo. Quase não consigo falar:
- Nossa. Estava morrendo de saudades.
- Eu também. E também senti saudade dele.
Ela desce a mão e me toca por cima da calça. Tem uma coisa tão sedutora que mesmo que fale palavrões, faz parecer poesia. Começa a tirar minha roupa, beijando todas as partes que vão ficando visíveis. Ficamos nus e abraçados, caindo no tapete da sala. Não dá pra ir pra nenhum outro lugar. Nem preciso ir. Tudo o que eu quero e preciso está ali.
Nos embolamos numa profusão de calor, vibração e entrega.
. . .
Ficamos uns dez minutos abraçados em silêncio, a respiração se normalizando aos poucos. Levanto, procuro e encho as taças de vinho. Volto até ela.
- Nossa, você foi ótimo.
- Você que é sempre maravilhosa.
- Já está ficando tarde. Infelizmente tenho que ir embora.
- E como é que ficamos?
- Olha, o normal você sabe que são duzentos, mas como é uma data especial eu vou deixar por cem…

® Postado no Blog antigo em 02.06.2004