domingo, 19 de maio de 2013

A Metade do Sonho

Então, aconteceu assim de repente. E mesmo que Murilo pudesse prever algo parecido, não tinha como se preparar. Algo que ele nem se lembrava mais. Algo bobo e infantil que aconteceu quando ele também era bobo e infantil, já que tinha apenas 13 anos.
A lembrança veio aos poucos. Fragmentos daquele dia.

Um dia que andava sem rumo pela casa, entediado. Primeiro dia de férias da escola e estava preso dentro de casa por causa da chuva. Que grande Injustiça! Principalmente quando se é criança… Na quarta vez que passou pelo corredor, viu a porta do escritório do pai entreaberta. Na verdade, era uma saleta que seu pai chamava de escritório e onde havia montado uma pequena biblioteca, onde ouvia música, lia, escrevia ou trabalhava sempre que estava em casa. Achou estranho, pois só estavam ele e a mãe na casa e seu pai sempre reclamava quando alguém esquecia a porta aberta. Não tinha chave, mas devia ficar sempre fechada. “E nada de bagunça!”.
Não tendo muito que fazer, resolveu bisbilhotar. Havia papéis com anotações espalhados sobre a mesa. A letra do pai era bonita. Tanto que ele passaria um bom tempo treinando, até ficar parecida. Dois livros abertos, algo relacionado a Leis, Direitos. Nada de interessante. Na estante existia uma quantidade razoável de livros. Conhecia todos. Bom, pelo menos as capas. E uma de tom verde num canto à direita chamou sua atenção. Não lembrava dele. E não teria como passar despercebido um livro com a capa verde. Parecia uma espécie de manual com exercícios para desenvolver a percepção, consciência, inconsciência. Esse tipo de coisa que esses tipos de livros têm. Estranhou aquilo, pois apesar de ser criança, já entendia as idéias do pai. Racional e cético. Não imaginava o pai com um livro desse tipo. Passou as folhas e leu alguns trechos de forma aleatória. A poltrona do pai, no canto do escritório, pareceu convidativa. Sua mãe preparava um bolo para o lanche da tarde. Não tendo nada mais interessante pra fazer, abriu uma bandeirola da janela, fazendo entrar um pouco mais de claridade e se instalou na poltrona. Abriu o livro e pelos títulos do índice ia lendo o que achava interessante. O primeiro e o segundo, achou as coisas mais malucas que já havia lido. Continuou. Passou por mais dois e agora no terceiro, percebeu que estava lendo e praticando. E aquilo fluía com uma naturalidade desconhecida pra ele. Aconteceu o mesmo com os dois seguintes. Mesmo pensando que pudesse ser algum tipo bruxaria ou hipnose, ficou curioso, pois percebeu que o que acontecia, era parecido com o que estava descrito no livro. Começou outro que dizia poder revelar o rosto da alma gêmea. Aquilo chamou sua atenção porque já começava a olhar as garotas com outros olhos. Acreditava até que já tinha se apaixonado duas vezes. E embora não entendesse muito do assunto, já tinha escutado algumas garotas falando de amor, paixão, alma gêmea. O tipo de conversa que as meninas têm.

Subitamente, ele não sabe onde está Sente a cabeça leve e tonta. O dia claro, o sol alto e quente. A forma como acontece, lembra aquelas cenas de filme onde a câmera passeia pelo cenário rapidamente, como os olhos de um pássaro voando baixo na direção do que parece ser… uma casa toda de madeira, com uma varanda que percorre a frente e a lateral. Na frente, uma escada com quatro degraus e alguém sentado, abraçando os joelhos com a cabeça enfiada entre os braços. Quando chega bem perto, o “passeio” termina numa freada brusca no momento que a garota ergue a cabeça e o olha nos olhos. A pele num tom moreno estonteante. Doce. Os olhos amendoados são tão negros quanto os cabelos longos e cacheados. A boca carnuda se move e ela diz algo que ele não consegue ouvir ou entender. Mas pôde sentir o hálito. Doce.

E tudo somiu tão rápido quanto veio. Murilo olha em volta, atordoado e vê que ainda está no escritório do pai. Sente uma estranha sensação de formigamento pelo corpo todo. As mãos estão trêmulas quando pega o livro caído no chão. Coloca de volta na estante e sai sem entender direito o que tinha acontecido.
A paisagem, o rosto e a quase certeza de saber, mas não ter entendido o que ela disse, ficariam em sua cabeça durante um bom tempo. Ainda assustado pelo que viu e sentiu, ficou quase uma semana sem conseguir entrar no escritório. Quando lembrou que não tinha visto o nome do livro ou de seu autor, a “prova do crime” não estava mais lá. Não teve coragem de perguntar ao pai e nem de comentar com ninguém. Aquilo foi tão real quanto absurdo. E como sempre acontece, o tempo passou e tudo foi sossegando nos cantos de sua mente, até cair no esquecimento.

Murilo estava distraído, lendo uma revista quando ela passou no corredor e seu perfume invadiu as narinas e sua memória. Algo acendeu e pulsou dentro de sua cabeça. Paralisado e tentando lembrar ou identificar o que era, levantou a revista até a altura dos olhos e a encontrou encostada na parede, próxima a uma das portas do vagão, indicando que saltaria na estação seguinte. Distraída, a garota olhava os sapatos e pensava que precisaria de mais um par até o fim das aulas quando sentiu que alguém a olhava. Ergueu a cabeça, com a curiosidade automática de ver quem seria e encontrou os olhos de Murilo com uma expressão alucinada e estranha. Ela se sentiu embaraçada e aliviada quando as portas se abriram e saltou do vagão. E, então aconteceu assim, de repente. E mesmo que Murilo desconfiasse que pudesse realmente acontecer, não tinha como se preparar para algo assim. Algo que nem se lembrava mais. Algo bobo e infantil que aconteceu quando ele era bobo e infantil, afinal tinha apenas 13 anos.
O cheiro ativou sua memória, mas quando a garota com uniforme de colegial ergueu a cabeça e o olhou, a lembrança daquela tarde invadiu sua mente com velocidade e força tamanha que ele chegou a sentir dificuldade em respirar, as mãos tremiam e o tempo pareceu parar. Só voltando ao normal quando as portas do metrô se fecharam. Pelo vidro da janela, ele viu a garota indo para a saída do metrô. Só percebeu que havia se levantado quando as pernas fraquejaram. Buscou apoio no encosto do assento e deixou o corpo desabar. Algumas pessoas olhavam de modo estranho, mas ele estava alheio a isso. Quase passou da estação seguinte, onde sempre desce. Seguiu para a saída da estação de Botafogo e foi andando pra casa. A cabeça não parava um minuto. As idéias se misturavam em trechos desordenados. Se sentia mais calmo, mas o coração ainda estava um tanto acelerado. Rever aquele rosto 20 anos depois e constatar que existia de verdade era algo assustador.
“Meu Deus ela existe de verdade existe mesmo e esteve na minha frente e eu não fiz nada e provavelmente nunca mais vou vê-la”.
Ele passou a semana andando de metrô entre as seis e sete da noite. Indo e vindo. “Mas enquanto estou voltando de Copacabana, ela pode estar vindo do Centro. E o contrário também. Pelo uniforme, dá pra saber que é normalista. Mas de qual colégio? Será que mora no Flamengo ou estava só de passagem? O quê diabos significa isso tudo?”.
Tentou controlar a situação o máximo que pôde. O rendimento no trabalho caiu um pouco. Achou extremamente oportuno que Carla estivesse viajando. Esperava ter esclarecido aquilo até o final do mês, quando ela chegasse, pois com certeza perceberia logo que tinha algo errado. O problema é que ele não sabia como resolver aquilo. Ele não sabia nem o quê era aquilo…
Numa quinta-feira fria, falou com Pedro, um de seus chefes na agência, que precisava resolver algumas coisas e pediu o dia livre. Chegou às oito e saiu às nove. A chuva fina ajudava o inverno a deixar a cidade fria e melancólica. Caminhou sem rumo pelas ruas do Centro e quando viu, estava em frente à Biblioteca Nacional. Gostava de lá. E era disso que precisava: a calma e o silêncio do lugar. Foi até a primeira mesa que vazia que viu, tirou algumas folhas e lápis da pasta que carregava. Não pretendia escrever ou desenhar nada, mas era bom pra passar o tempo e ajudava a disfarçar se começasse a olhar pro nada e falar sozinho. Você achar que está ficando doido é uma coisa. Complicado é quando os outros também começam a achar. Sabia que aquilo não podia virar obsessão. Mas não conseguia parar de pensar.

Sentiu um estranho calor na nuca e então, aquele perfume novamente. Murilo pensou que a loucura havia chegado e acabava de se instalar e achou que ía começar a sentir e ver coisas. A boca seca e o coração alucinado fizeram com que ele olhasse em volta. Ali! A garota numa mesa ao próxima a sua, olhando pra ele até o momento que seus olhos se encontraram e ela baixou os dela rapidamente, voltando pro livro e o caderno abertos à sua frente. Ele guardou tudo na pasta, tentou se controlar e foi até ela:
– Michelle!
Ela parou de escrever e ergueu os olhos, curiosa.
– Oi?
– Seu nome é Michelle, não é?
– É, mas eu não lembro de te conhecer.
– Provavelmente não, mas eu te conheço há vinte anos.
– ???
– Nossa, vai ser mais difícil do que eu pensei. Não sei nem por onde começar.
– Que tal mostrando a carteirinha de maluco?. Eu tenho dezessete anos.
– Olha, pode parecer absurdo… Na verdade, é absurdo, mas eu preciso que você escute essa história, por mais doida que ela possa parecer.
– Mas primeiro me diga porquê que eu tenho que ouvir essa tal história e… Caramba! Você é o cara do metrô que ficou me olhando esquisito!
Murilo se perdeu um pouco, procurando entender do que ela estava falando e quando viu, pensou em como sua cara deve ter parecido estranha.
– É, eu devia estar com cara de idiota. Mas foi o choque de te reconhecer. É por isso que eu tenho que te contar. Você faz parte dela. E me desculpe se te assustei.
– Tudo bem. Eu escuto bobagem toda hora por causa do uniforme. Já nem sinto tanta raiva desses doentes que ficam babando quando a gente passa…
– Mas eu não sou um desses babões. Talvez, daqui a uns vinte ou trinta anos?!
Murilo só reparou que ela estava com a roupa daquele dia, quando ela falou.
– Foi a primeira coisa que eu pensei. Mas, o estranho foi que tive a sensação de te conhecer e saber que não era isso – ela sentiu um arrepio na nuca – e mais estranho ainda é que essa impressão continua, mesmo nem sabendo o seu nome.
– Murilo – ele inclina um pouco o corpo sobre a mesa que os separa, estendendo a mão pra ela. Os dois acham o toque agradável.
- E agora que conseguiu me deixar curiosa, me diga o quê é que está acontecendo.
- Tá, mas acho que seria melhor em outro lugar ou vão acabar nos expulsando daqui. Você gosta de café?
Michelle pensa um pouco, fecha o livro e o caderno e diz:
- É, um café cai bem. E num lugar público não tem perigo do seu lado babão se manifestar.
Os dois começam a rir e ouvem o tradicional “shiiiii” pedindo silêncio. Saem pra rua e a chuva havia parado, mas as ruas estão tranquilas por causa do frio. Michelle desvia das poças na calçada e Murilo não desvia os olhos do rosto dela. Murilo tinha um sorriso bobo no rosto, sentindo um misto de euforia, agitação e alegria que não lembrava como era, há muito tempo. Michelle estava séria e curiosa pra saber o que aquele estranho teria de tão interessante pra falar, pois aquela sensação do metrô persistia e mesmo sem saber o que era, sabia que era algo sério. Ao menos pra ele.
– Você não é daqui do Rio, é? – ele perguntou.
– Não. Sou de Goiás.
– Nossa. Um bocado longe.
– É, um pouco.
– É aqui – a mão de Murilo toca levemente nas costas dela, puxando-a para seu lado.
Ele se adianta, abre a porta para ela e entram no que parecia um bistrô. O lugar é elegante e aconchegante. Apenas um sujeito distraído com um jornal, ocupa uma das pequenas mesas. Eles seguem até o fundo e Murilo puxa a cadeira para Michelle sentar. Um garçon se aproxima, lhes entrega o cardápio enquanto deseja um bom dia e se afasta. Michelle olha a decoração em volta e diz:
– Bem bacana isso aqui.
– É, eu gosto. O quê você sugere?
Ela pega o cardápio e não se demora olhando a lista.
–Vou querer Alpino, e você… Tem cara de gostar do tradicional: Expresso – ele confirma com a cabeça e um sorriso – mas eu sugiro o Cappucino Taça.
Ela gosta do ar de surpresa e satisfação no rosto dele, que chama o garçon e faz o pedido.
– Então, por que não começa? – com os cotovelos na mesa, Michelle cruza os dedos das mãos e apóia o queixo.
– O problema é que não sei por onde. É difícil acreditar que você esteja aqui na minha frente.
– Ok, vou tentar facilitar. Você mora aonde?
Em Botafogo. E você, é no Flamengo?
– É. E faz o quê da vida?
– Trabalho com publicidade. E você, vai ser professora?
– Espero que sim.
O garçon chega com uma enorme bandeja e coloca as xícaras fumegantes em frente aos dois. Ela sopra um pouco antes do primeiro gole. Murilo parece mais relaxado quando ela diz:
– Bom, que tal acabar com esse mistério e me dizer o que está acontecendo?
– Então aconteceu assim, de repente…
E não demorou mais que meia hora. Murilo estava elétrico. Contou todo a história, algumas lembranças da adolescência, o dia no metrô e os seguintes, até o primeiro e o segundo e atual encontro na Biblioteca. Em nenhum momento ela o interrompeu. Em algumas partes, ela notou os olhos dele brilhar. Em algumas partes, sentiu o brilho do seu apagar. Principalmente, nas vezes em que um calafrio arrepiou seus braços e a nuca. E nas que ficou com a respiração suspensa, quase esquecendo de voltar a respirar.
– E então, isso não é muito mais doido do que qualquer coisa que você tenha pensado?
O olhar dela está distante. Ele nota, mas não sabe o que é. Ou prefere não saber.
– De longe, é a mais incrível que já me contaram. Nem tive tempo de pensar em muita coisa. E agora, até pensar está difícil. Acho que você devia aproveitar isso num livro ou filme. Até acredito que você sonhou ou viu isso tudo, mas eu não sei nem o quê dizer.
– Nunca acreditei nessa coisa de alma gêmea. Mas era o que dizia no livro. A primeira vez que te vi foi tão real quanto agora. E já tinha até me esquecido disso tudo até você aparecer de repente e o podia ser só um sonho antigo virou uma grande confusão na minha cabeça.
– Bem legal da sua parte vir confundir a minha também.
– Não foi intencional, mas eu tinha que te contar. Tem muito mais coisa além de tudo isso. Eu tenho namorada e gosto muito dela. Sorte que ela está viajando e só chega no fim do mês. E não dá pra falar algo assim por telefone, mas na verdade, acho que não vou falar nada. E você, tem namorado?
Meu Deus, você pode até ser casada?!
– Sim. Não! Não sou casada. Ainda. Tenho namorando e me caso em dezembro – ela ergue a mão direita e ele compreende que o que já tinha visto, não era um simples anel com um brilhante – e eu amo o André. E já está tudo pronto, até o vestido. Afinal é daqui a cinco meses…
O silêncio em que ficam é quase constrangedor.
– Provavelmente, não vou ser nem convidado, né?
– Seria esquisito te ver na igreja. E seria muito masoquismo ir ao casamento de alguém que você pensa ser sua alma gêmea. Acredita mesmo nisso?
– Não acreditava até você aparecer na minha frente. Não tem como saber se vou gostar de você por causa de uma experiência num livro, mas como definir a idéia de ter antes mesmo que você tivesse nascido? O seu rosto e seu cheiro ficaram gravados na minha memória. Tem falhas como o metrô, que não tem nada a ver com aquele descampado e o cabelo também é diferente, mas tem esse perfume… Mesmo que passe vinte, trinta anos, não vou esquecer nunca.
– É, ainda tem essa coisa de cheiro – ela ergue o braço, aproxima o nariz da axila e fala num tom de deboche – não acredito que seja falta de banho…
Murilo acha graça mas logo em seguida fica sério.
– Mesmo num labirinto com os olhos vendados, eu acharia você.
– Você me assusta com isso, sabia?
– E como você acha que eu estou? Pode ser que eu esteja me precipitando. Seria muito mais fácil me aproximar como um caça-modelos por exemplo, e te dar um cartão da agência, afinal você é linda e não seria nada absurdo. Mas você conseguiria pensar em algo assim, se tivesse acontecido contigo?
– Acho que não. Mas Murilo, eu tenho sonhos e projetos que não podem ser abandonados assim, de uma hora pra outra. Você também já deve ter os seus. Já disse que acredito na sua história, mas a questão é essa: É sua história. Se você não tem como saber se pode vir a gostar de mim, imagine eu que não passei por isso.
Ele paga os cafés e saem pra rua. Ficam parados embaixo da marquise, se protegendo da chuva fina que havia voltado.
– Então é isso! A gente se vê de novo?
– Você parece ser um cara bacana, mas depois de tudo você tentaria ser apenas um bom amigo?
– É, seria mesmo difícil.
– Desculpa, mas eu tenho que ir. Perdi completamente a noção da hora. Espero que você fique bem.
Ela beija o rosto dele, atravessa a rua correndo e entra num ônibus que estava prestes a sair. Murilo não consegue se mover. Apenas acompanha a corrida dela e depois o ônibus se afastando. O calor do rosto e o hálito dela tão próximos não contribuem em nada para que ele fique bem.

Duas semanas depois, Murilo está parado em frente à Biblioteca Nacional. Quando decide entrar, Michelle aparece na porta. A expressão de surpresa logo dá lugar a um lindo sorriso.
– Oi!
– Oi. Que bom te encontrar. A gente pode conversar?
– Tá, mas está tudo bem?
– Sim e não. Mas e você, ainda vai se casar?
– Vou. Olha só, eu tenho que ir pra casa e parece que essa conversa vai ser longa. A gente pode ir andando pela praia.
– Legal. Mas só se eu levar os seus cadernos.
Os dois caminham lado a lado. Michelle está curiosa:
– Mas então, porque disse sim e não ainda agora?
– Sim porque eu acreditava que ía te encontrar aqui e porque fui promovido a chefiar a agência em São Paulo. O não é óbvio, porque provavelmente não vou mais te ver. E porque tinha alguma esperança de que, de repente, tivesse desistido de casar…
Ele fala num tom descontraído, brincando. Mas ela percebe que tem um fundo de seriedade.
– Nossa! Que legal isso. Tá vendo como as coisas podem não ser nada daquilo que você pensava?
Está tudo indo tão bem.
– E sua namorada, já voltou?
– Já. Ela vai comigo. É ótima jornalista e arrumará algo bem rápido. Ah, e tem outra novidade: gostei daquela sua idéia do livro e comecei a escrever algo sobre essa maluquice toda.
Michelle pára. Aquilo foi mais surpreendente ainda.
– Ai meu Deus, que legal! Qual o título?
– Ainda estou em dúvida, mas o provisório é: A Metade do Sonho.
– Hummm, parece bom. Explica o quê é?
– É você?! Sobre essa confusão toda. Sem saber se foi uma alucinação, ilusão ou um sonho. Dae que se você é minha alma gêmea, a outra metade, me veio essa idéia. Você é a metade do sonho. E como vou trocar os nomes pra evitar processo, indenização, essas coisas, gostaria de sugerir algum pra personagem principal?
– Ah, não sei. Eu gosto do meu nome, mas se for o caso, que tal Fabianna?
– Ok, anotado.
– Mas tem que ser com dois enes, hein?! Porque Michelle tem dois eles e assim vou saber que sou eu mesmo…
– Só não acredito que alguém publique, dae que vai ser bem difícil você ler alguma coisa. Engraçado é que nunca pensei em escrever nada, mas as idéias estão vindo tão rápido… E mesmo que não seja, tem sido como uma espécie de terapia. E melhor porque economizo analista e tento entender um pouco disso tudo.
– Tenho certeza que vai ser um sucesso. E como você trabalha com publicidade e foi promovido é porque tem boas idéias e é competente. Ótimas ferramentas pra qualquer escritor. Nossa, fiquei curiosa pra saber como vai ser.
Murilo caminha pensativo, olhando pro mar. As poucas pessoas na areia aproveitam o calor, depois de mais de uma semana de frio e chuva. Mudanças comuns no louco tempo carioca. Mas só aproveitam o calor, já que um mergulho na água não é muito aconselhável.
– Mas era pra ser escrita por nós dois. Vou tentar não tocar mais no assunto. Então fale de você, vem sempre na BN?
– Ah, mas lá é lindo, não é? Adoro aquele silêncio. E os livros. Meus pais se separaram e tive que vir com minha mãe pro Rio. Só pensava em me formar e voltar pra casa. Adoro aquele lugar e ía dar aula pras crianças. E pros adultos, já que poucos sabiam apenas escrever o nome. E como te disse, as coisas mudam. Não vê? Conheci o André e tive que fazer outros planos. Acho que não volto mais pra lá, mas ainda quero dar aula.
Ela indica que já era hora de atravessar a pista de novo. Caminham em silêncio por um bom tempo e se entram nas ruas cercadas de prédios. Murilo pensa que já deve estar perto e é melhor falar antes de chegarem onde ela mora. Ele pára e a segura pelo braço. Os dois ficam bem próximos:
– Posso te pedir uma última coisa?
– Pode. Mas vê lá o que vai ser, hein?!
– Nah é bobagem, mas preciso muito saber… – ele não completa a frase. Sem dar tempo para Michelle reagir, avança e cola sua boca na dela, que se assusta, mas depois relaxa e se entrega. O beijo é bom. Longo. Molhado. Quando se afastam, parece que não é bem isso que querem. Murilo fica atordoado e eufórico. Michelle fica atordoada e envergonhada olhando pra calçada, sem coragem de encará-lo. Ele toca no queixo dela e com uma leve pressão levanta a cabeça dela e diz:
– Desculpa, mas eu precisava saber como era. E talvez, guardar guardar comigo pra sempre.
– Não, tudo bem. Mas você não podia ter feito isso. Mas o quê que foi isso? Minhas pernas estão bambas, mas deve ser por causa do susto. Meu prédio é aquele ali – ela aponta.
Eles param na entrada do prédio. Michelle parece desorientada. Murilo entende e acha que não dá pra prolongar mais aquela situação:
– Então Michelle, boa sorte pra você. Em tudo.
– Ai, pra você também. Tenho certeza que vai dar tudo certo. Pra nós dois.
Quando ele se aproxima para beijá-la no rosto, ela se assusta e dá um passo pra trás. Num gesto, ele diz que está tudo bem e estende a mão para ela. Ela logo estende a sua. Ele beija as costas na mão dela, depois quase cola o nariz na pele dela e começa a cheirá-la. Ela acha aquilo esquisito e quando ele já avançava e subia pelo braço, ela lembra que estão na portaria do seu prédio e se afasta um pouco. Ele sabe que é hora de ir embora:
– Então, foi um prazer te conhecer pessoalmente. Vejamos onde isso tudo vai dar.
Ele se vira e sente a mão dela segurar seu braço.
– Murilo, espero que você tenha entendido a situação. Eu penso que na possibilidade de que, se existir mesmo, isso de almas gêmeas e elas se encontrarem, não exista uma regra, dizendo que vão ficar juntas. Pode ser que você seja o cara certo, mas apareceu na hora errada. A gente não pode se basear naquela experiência doida. Não tem como saber se ía dar certo. A gente nem se conhece.
Ele a olha nos olhos e fala tão baixo, que ela tem que assimilar o movimento dos lábios com o som diminuto:
– Eu te conheço há mais de vinte anos… Adeus.
A mão dela desliza pelo braço, toca na mão dele e o último contato é dos dedos se separando. Ela fica parada na calçada olhando ele seguir o caminho que vieram. Ele não olha pra trás. Quando dobra a esquina, ela resolve entrar no prédio.

Dez anos depois…
Murilo caminha descalço pelas ruas “calombadas” e históricas de Parati. Andou até chegar à beira-mar. O lugar estava vazio e tranquilo. Veio para o lançamento de seu quinto livro na Flip e decidiu ficar mais uma semana. Achou que merecia umas férias. Há seis anos largou a agência em São Paulo e foi morar na Espanha. Já podia viver como escritor. Está no terceiro casamento. Tanto a atual quanto as duas primeiras esposas eram bem morenas com cabelos pretos e encaracolados. Pareciam um pouco com Michelle, mas nenhuma tinha o seu cheiro. Sentou no muro que faz a contenção do mar e ficou um bom tempo olhando pro vazio. A mente também estava vazia. De repente, sentiu aquele perfume e teve que se equilibrar pra não cair do muro na água, ao procurar Michelle. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ela está pensando nele.
Michelle viu seus planos e sonhos irem por água abaixo quando faltava um mês para o casamento e seu noivo André, foi morto num assalto. Ela ficou em choque por quase dois meses. Aos poucos as coisas foram se ajeitando, e a vida seguiu. Numa tarde que saía da Biblioteca Nacional, lembrou de Murilo e sua história alucinada. Ficou curiosa em saber como estavam as coisas. E quando pensou que podia estar com saudades daquele beijo, afastou logo o pensamento. Quando se formou, voltou para pra casa, em Alto Paraíso. Não para dar as aulas que tanto queria, mas para cuidar do pai, que havia sofrido um derrame e passava o tempo todo na cama. Ela até tentou voltar à normalidade e namorou alguns sujeitos. Mas logo perdia o interesse. E logo se desinteressou do assunto. “Seu” Júlio havia melhorado nos últimos três anos, e ela estava um pouco alegre, pois ganhou algum tempo livre e pode enfim, levar adiante a idéia de ser professora.
Sentada na escada da enorme varanda da casa, que é toda de madeira, tentava afastar os cabelos que tapavam sua visão. Desde que voltou, parou de fazer o “alisamento japonês” e com o tempo, seus cabelos lindos e lisos voltaram a crescer lindos e encaracolados. Prendeu num coque simples e charmoso. Voltou sua atenção pro livro que estava lendo pela quinta vez: A Metade do Sonho, de Murilo Martins. Sempre que lia o nome “Fabianna” acabava rindo sozinha. A do livro tinha quase todos os defeitos e qualidades dela. Tentava não pensar em como Murilo podia conhecê-la tão bem, já que se encontraram apenas duas vezes. Mas, o que mais mexia com ela, é que no livro o final era diferente. Fabianna arriscou e resolveu ficar com o mocinho da história. E foram felizes para sempre.

Michelle solta um longo suspiro, abraça os joelhos e esconde a cabeça. Sempre chora no final. Ela comprime a lingua no céu da boca e se assusta ao sentir o gosto de Murilo. Então ergue a cabeça e olha pro imenso descampado da Chapada dos Veadeiros. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ele está pensando nela. Quando volta a baixar os olhos, uma lágrima rola em seu rosto e cai na última palavra do livro:
F I M

® Postado no Blogo antigo em 17.07.2005

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